sexta-feira, 5 de maio de 2023



05 DE MAIO DE 2023
CELSO LOUREIRO CHAVES

Pianistas longevos

Lendo a biografia de Mário de Andrade escrita por Jason Tércio, descubro na página 207 que, em novembro de 1924, ele saiu de casa para assistir um concerto do pianista Mieczislaw Horszowski, então com 32 anos, no Municipal de São Paulo. Pois em 1988, mais de seis décadas depois, Horszowski estava de contrato novo, registrando álbuns com o seu repertório de referência, Chopin, Schumann, Mozart...

Não é o único caso de pianista longevo. Há Menahem Pressler, por exemplo, que, ainda há pouco e adentrando os 90 anos, tocava em público. Uma única concessão à velhice: ter a partitura diante dos olhos, para prevenir qualquer improvável lapso de memória. Há no YouTube um registro de poucos anos atrás, ele em idade avançada tocando Mozart com a Orquestra Gulbenkian, a mesma que fez a estreia lisboeta do meu concerto para violino.

Em 1981, quando a Osesp estreou minha Balada para o Avião que Deixa um Rastro de Fumaça no Céu, com Davi Machado na regência, no Cultura Artística de São Paulo, o programa incluía Magdalena Tagliaferro tocando um concerto de Saint-Saëns, de quem ela tinha sido amiga, muitas décadas antes. Não importavam os seus quase 90 anos: os acordes e os cabelos laranja continuavam os de sempre.

Numa das visitas de Tagliaferro a Porto Alegre eu tinha sido seu aluno. Lembro que ela não tinha dúvidas em dançar pelo palco para demonstrar algum ponto rítmico que eu, aluno iniciante, deixava passar entre os dedos. Não recordo que peça estava na estante do piano, talvez fosse um Debussy dos tempos de Tagliaferro em Paris. Mas sei que ela dançava com gosto, aclarando o ritmo, fazendo brincadeira. Para ela, brincar e respeitar a música eram a mesma coisa.

Naquele momento, Magda Tagliaferro era a grande dama do piano brasileiro. Suas colegas mais próximas em idade, Guiomar Novaes entre elas, já iam deixando as atividades ou estavam mesmo recolhidas à velhice. Às vezes se diz, com olhos arregalados, que esse pianista ou aquela pianista, apesar de jovem (uns 30 anos?), já toca um repertório de quebrar os dedos e lá se vai pelo mundo. Mas, diante do teclado, velhice e juventude se confundem.

Para mim, mais admira quem chega aos 90 musicando do que quem recém chega aos 20 fazendo proezas. Pois conservar intactas a destreza digital e a prontidão mental para ir tocando o repertório de sempre, na experiência acumulada dos 80 (às vezes 90) anos, é algo para ver e ouvir. Pois não é esta a prova de que, se calhar, a música estende a vida, sem fim à vista, como se não houvesse amanhã?

CELSO LOUREIRO CHAVES

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