04 DE MAIO DE 2020
CLÁUDIA LAITANO
Chama o síndico
Moro em um edifício pequeno, sem elevador nem porteiro, em uma esquina silenciosa de Porto Alegre. Comparado a outros edifícios em que eu já morei, este aqui é relativamente tranquilo, sem vizinhos barulhentos ou mal-humorados. Mas sendo feito de tijolos e povoado por seres humanos, dois materiais que tendem ao desgaste, nunca considerei a sério a ideia de ser síndica.
Meus vizinhos, claro, não tinham como saber. Na primeira ou segunda reunião de condomínio, moradores mais antigos sugeriram que eu assumisse o comando já na gestão seguinte. Não que eu parecesse especialmente talhada para a tarefa, longe disso, mas todo mundo ali já havia assumido aquela bronca e tinha chegado a hora de eu me sacrificar um pouco pela coletividade. Na época, eu trabalhava 10 horas por dia e tinha uma filha pequena. Estava em paz com a minha cota de sacrifícios. A ideia de chegar em casa à noite e ter que lidar com o cano entupido de um vizinho me parecia tão excruciante quanto assistir a uma live de sertanejos durante toda a madrugada.
Felizmente já tinham inventado uma solução para o problema e não era a institucionalização da anarquia. Sugeri, com uma ênfase talvez um pouco desesperada, que se contratasse um síndico externo. Nada melhor do que alguém de fora para atender todo mundo e não sobrecarregar ninguém. Certo? O pessoal se olhou, olhou para mim, e eu já estava quase fugindo da sala e do país quando alguém fez uma cara de "essa não é do basquete mesmo" e uma outra vítima à mesa foi nomeada. Anos depois, minha ideia de um síndico profissional acabou vingando. (Preguiçosa, não: visionária.)
Moral da história? Imaginem que, sem vocação ou competência, eu decidisse aceitar o cargo, seduzida pela ideia de não pagar condomínio e de mandar e desmandar no edifício como se fosse um pequeno feudo herdado da família. Gato? Só a Xibe. Cachorro? Só se o vizinho for meu amigo. Festa no salão? Só se eu for convidada. Som alto? Só o da minha filha. Seria ruim, seria péssimo, mas se tornaria completamente infame no dia em que aparecesse uma falha na estrutura, estilo assim Palace II, e eu tirasse o corpo fora: "E daí? O que eu posso fazer? Cai edifício toda hora". Um síndico que exige todos os poderes ("eu que mando", "eu que escolho", "a caneta é minha"), mas não assume nenhuma das responsabilidades ("não faço milagres") deveria ser um episódio raríssimo no cosmos político universal. Mais raro do que, digamos, uma pandemia.
Mas foi exatamente esse raio que caiu sobre nossas cabeças.
CLÁUDIA LAITANO
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