31 DE AGOSTO DE 2019
SALGADO FILHO
Apagar das luzes depois de seis décadas
Prédio antigo do aeroporto, o terminal 2 vai deixar de receber voos nas próximas semanas. Uso será só para escritórios e torre de controle
jessica.weber@zerohora.com.br
Após seis décadas de partidas e reencontros, o prédio antigo do aeroporto Salgado Filho deixará de receber voos nas próximas semanas. A data da mudança ainda não foi divulgada pela Fraport, que administra o aeroporto. A concessionária informa apenas que será "em meados de setembro". Transferindo as operações da companhia Azul ao terminal principal, em fase final de ampliação, a empresa pretende utilizar o chamado Terminal 2 para seus escritórios e torre de controle.
Da visita do papa João Paulo II à partida de Jango após o golpe de Estado, o aeroporto velho testemunhou importantes passagens da história do Rio Grande do Sul e do Brasil. Voltado para a Avenida dos Estados, o terminal começou a funcionar em 1953, substituindo o chamado aeroporto São João, e passou por sucessivas reformas ao longo das décadas seguintes. Chegou a ser desativado em 2001, com a abertura do novo terminal junto à Avenida Severo Dullius, mas voltou a ser utilizado para voos domésticos em 2010, complementando as operações.
A história do aeroporto se confunde com a do professor do curso de Ciências Aeronáuticas da PUCRS Claudio Scherer, 77 anos, piloto da Varig de 1966 a 1997. Ali ele passava tardes inteiras assistindo a decolagens e aterrissagens, pelos 12, 13 anos de idade. Circulava pelo terraço panorâmico (à época, não envidraçado) e caminhava até a cabeceira da pista - algo inimaginável com os procedimentos de segurança adotados hoje. Sentado no concreto, ele esperava os aviões se aproximarem. Conhecido do fiscal, também circulava entre os aviões parados, tirando fotos com sua máquina de caixote.
Scherer lembra de uma linda praça no lugar do estacionamento. Recorda que o prédio tinha mais iluminação natural - hoje, acha que "parece uma caverna" - e que a escadaria que leva ao segundo andar dava em frente a um restaurante chique. Fazia parte da programação de final de semana do porto-alegrense ir de carro até o Salgado Filho para comer ali.
O aeroporto nessa época era um orgulho, e voar, coisa para milionários, conta Scherer:
- Nos anos 1960, as pessoas viajavam com traje de noite, botavam tailleur, casaco de pele, faziam penteado. Os homens iam de terno e gravata. Era um desfile de moda.
Junto ao Salgado Filho, ficava também a base da Varig, que ali viveu tempos de luxo. Como o preço das passagens aéreas era tabelado, companhias tentavam ganhar os passageiros no serviço de bordo, explica o ex-piloto.
- No tempo do Electra, que fazia Porto Alegre a São Paulo em 1 hora e 50 minutos, o avião decolava de meio-dia e tinha serviço de almoço quente. Vinha canapé, vinho, uísque, cerveja. Recolhidas as bandejas e os talheres de aço, passava um carrinho oferecendo pâtisserie, frutas, sorvete.
Decadência
A Varig encerrou suas atividades em 2007, e o terminal antigo já não tem nem sombra da opulência que tinha. Com os dias contados, há sinais de abandono: elevador que não funciona, grande quantidade de entulhos depositada em sala junto ao terraço panorâmico, fiação à mostra em alguns pontos. De madrugada, com movimento ainda menor do que o normal, há apenas uma lancheria aberta e relatos de atuação de flanelinhas na rua.
- Os prédios importantes como o aeroporto fazem fama, entram em decadência e não voltam mais. Tem a curva de evolução e a curva de decadência - comenta Scherer.
O paulista Dino Bruzadin Filho, 59 anos, fez escala pela primeira vez no Terminal 2 neste mês. Achou a sala de conexão apertada, as áreas comuns, "antigas e abandonadas", e as opções de alimentação, limitadas. O engenheiro eletricista paranaense Antonio Maurício Machado, 56 anos, avalia que faz sentido desativar o terminal:
- Nunca achei que ele fosse compatível com uma capital como Porto Alegre. E, para quem não é da cidade, a divisão do aeroporto entre os dois terminais sempre foi motivo de confusão.
Já a professora de séries iniciais Sandra Peres, 50 anos, de Canoas, ficou chateada quando informada pela reportagem que o terminal não receberia mais passageiros. Sentada no saguão de entrada, ela disse achar o ambiente aconchegante. Estava admirando a obra de arte gigante na parede a sua esquerda quando foi abordada.
Recepções e despedidas para a história
Em abril de 1964, o velho Salgado Filho testemunhou, em menos de 24 horas, uma montanha-russa de emoções. Na madrugada do dia 2, o presidente João Goulart, o Jango, recém deposto pelos militares, chegou de Brasília ao aeroporto em um avião Avro da Força Aérea Brasileira (FAB). Era esperado no Rio Grande do Sul por Leonel Brizola e pelo comando do Terceiro Exército, que permanecia aliado do presidente. Um movimento semelhante ao de 1961, na Campanha da Legalidade, se formava: o povo se mobilizava nas ruas pela permanência de Jango no poder, comenta Flávio Tavares, autor de livros como 1964: o Golpe:
- A tensão toda se voltava para o aeroporto, para a chegada de Jango.
De acordo com reportagem do jornal Última Hora, o avião pousou precisamente às 3h15min. Cinco tanques e aproximadamente 200 soldados esperavam Jango para garantir sua segurança. Primeiro a desembarcar, o presidente deposto entrou no saguão do aeroporto abraçado com o então deputado Leonel Brizola, "sorrindo largamente".
Tavares, o último jornalista a conversar com Jango na saída do Palácio do Planalto, afirma que ele partiu a Porto Alegre se dizendo disposto a resistir - mas não foi o que ocorreu. Após reuniões e dormir por duas ou três horas na Capital, Jango retornou ao Salgado Filho e foi no mesmo avião a São Borja. De lá, seguiria para o exílio no Uruguai. O prefeito de Porto Alegre, Sereno Chaise, leu o pronunciamento do presidente, em que justificava ter optado pelo não derramamento de sangue.
- A decisão do Jango de tomar o Avro da FAB e ir para São Borja mudou a história do Brasil naquele momento, porque deu o triunfo ao golpe de Estado. Se não tivesse viajado para São Borja, se não tomasse o avião, teria necessariamente que resistir - diz Tavares.
A partida de Jango foi um dos maiores acontecimentos presenciados ali pelo jornalista Nelson Moura, que, entre as décadas de 1950 e 1970, foi setorista de aeroporto. Sua função na Folha da Tarde era fazer plantão praticamente todos os dias no terminal antigo do Salgado Filho, atrás de entrevistas inéditas e furos de reportagem com passageiros ilustres que partiam ou chegavam.
Assim flagrou Ted Kennedy, senador americano de 1962 até 2009 e irmão do presidente assassinado John Kennedy, tomando uma cerveja Faixa Azul em uma conexão entre o nordeste brasileiro e Buenos Aires. Também aparece em fotos ao lado do meio-campista Didi, cercado de crianças deslumbradas, pouco depois de a Seleção Brasileira conquistar o Mundial na Suécia, em 1958.
Quando Ernesto Geisel, à época ainda presidente da Petrobras, se recusou a dar entrevista, Moura não poupou nas folhas do jornal: "chegou mal-humorado a Porto Alegre".
- O aeroporto era o cartão de visitas de Porto Alegre e uma fonte de informações importantes. Tudo acontecia aqui, furos internacionais, passagem de artistas, de políticos. Aqui termina a história dele, é uma lástima. Mas vai pro progresso, para um mais novo, né?! - diz o jornalista aposentado, aos 88 anos.
JESSICA REBECA WEBER
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