13 DE AGOSTO DE 2019
CARPINEJAR
Reino do crochê
A casa da avó e a casa da mãe e a minha casa são iguais por dentro: o reino do crochê.
Mantenho o mesmo hábito de enfeitar ou proteger os móveis com os trançados. Azuis, rosa, verdes, vermelhos, brancos, a cor da linha muda, mas não o uso ostensivo pela família.
É mais do que uma mania de decoração, representa uma mentalidade cuidadora. Expõe o nosso afã em zelar pela memória dos objetos. Ter algo é, acima de tudo, conservar. Agradece-se uma compra alcançada prolongando a sua duração.
A lã é a gratidão que envolve os pertences, o véu do lar, o embrulho das alegrias cotidianas, o forro essencial na prevenção ao manuseio, a escolta estratégica para nada quebrar ou sair do lugar.
Na mesinha da sala, debaixo dos porta-retratos, coloquei paninhos de crochê.
Jarros de flores têm a base decorada de crochê. Além dos pratinhos, há os modelos de invariáveis círculos concêntricos resguardando a madeira.
O liquidificador é protegido por um aparador de crochê. O puxa-saco atrás da porta da cozinha é de crochê.
O tampo de vidro do fogão, quando em merecido descanso e brilho, leva a toalhinha de crochê e a chaleira por cima.
O botijão de gás tem a capa de crochê.
A manta da cabeceira do sofá da sala e as almofadas apresentam a resistência do crochê. Tanto que sempre acordo dos cochilos com o rosto avermelhado, impresso em grades.
Em dias felizes, a cama de casal é arrumada com colcha de crochê.
Até a tampa da privada merece o agasalho (fundamental por dois motivos, para inspirar que o povo familiar baixe a tampa ao sair e também para aquecer o traseiro na troca de roupa).
Poderia dizer que a residência inteira está vestida para o inverno.
É emblemático que o primeiro presente que recebi na vida foi um sapatinho de crochê, dado pela minha tia materna e posto depois na porta do quarto com um prego para celebrar o meu nascimento. Meu vício pela saudade já começou no berço, instruído a bordar os espaços da intimidade e costurar os tempos entre diferentes gerações, educado a nunca deixar a poeira e o abandono cobrirem as recordações.
Eu saí do interior do Estado, porém o interior do Estado jamais saiu de mim.
CARPINEJAR
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