sábado, 30 de abril de 2011



01 de maio de 2011 | N° 16687
MARTHA MEDEIROS


Para Francisco e todos nós

Nunca havia pensado nisso: vemos nossos pais através dos olhos de nossas mães – estando eles vivos ou não

A história é a seguinte. Ela era uma publicitária mineira de 36 anos que estava vivendo uma história de amor com todos os ingredientes que se sonha: reciprocidade, leveza, afinidades, planos e, pra completar, um filho na barriga. Engravidara de surpresa, e festejou. O homem com quem repartia esse conto de fadas também ficou emocionado com a notícia, e passaram a curtir cada passo rumo à nova etapa. Quando ela estava com sete meses de gravidez, ele morreu de uma hora para outra.

O horror da morte súbita de um amor e o êxtase de uma nova vida chegando: foi essa contradição emocional que, quatro anos atrás, viveu Cristiana Guerra, atualmente uma conhecida blogueira especializada em moda (www.hojevouassim.com.br). Cris transitou entre o céu e o inferno. Poderia ter se entregado à vitimização, mas fez melhor: transformou sofrimento em poesia.

Francisco nasceu dois meses depois, forte, saudável e órfão. Cris não se conformou com a ausência de um dos protagonistas da história, e foi então que começou a escrever cartas para que seu bebê lesse quando tivesse idade para tal. Nessas cartas, contou sobre quem era seu pai, como ela e ele se conheceram, e os problemas e alegrias pelos quais passaram durante o pouco tempo de convívio, algo em torno de dois anos de relacionamento. Esses textos, ilustrados com fotos do casal e complementados por alguns e-mails trocados, virou um livro, Para Francisco, da Editora Arx.

Cris me entregou esse livro em mãos dias atrás, quando a conheci em Belo Horizonte. É uma mulher charmosa, firme, bem-humorada. Participamos juntas de um evento e depois voltei ao hotel, onde dei as primeiras folheadas no livro. Na manhã seguinte, ele já havia sido devorado, e me senti agradecida pela oportunidade. Em tempos em que só se fala em amores fóbicos, ler o texto elegante e inteligente da Cris me fez ter uma nova perspectiva do que é tragédia. Tragédia é não lembrar com doçura.

A relação de Cris com o pai de seu filho não teve tempo para o desgaste e a falência. Tiveram alguns desencontros, mas nada que fraturasse a relação que era encantadora e sólida a seu modo. Não sei se duraria pra sempre, mas durou o suficiente pra montar a memória afetiva que estruturará a vida de um menino que conhecerá seu pai através da visão de sua mãe. Nunca havia pensado nisso: vemos nossos pais através dos olhos de nossas mães – estando eles vivos ou não.

A narrativa dessa vida-e-morte simultâneas é contada com desembaraço, emoção e nenhuma pieguice, mesmo tendo todos os elementos para virar um dramalhão. Mas Cris Guerra não deixou a peteca cair e, além de um belo livro, nos deixou um recado valioso: a vida não apenas continua, ela sempre recomeça.


01 de maio de 2011 | N° 16687
VERISSIMO


Domínio

Quem escolhe o nome das coisas é quem tem o poder para isso, não necessariamente o direito

O nome da montanha mais alta do mundo, Everest, vem de Evresta, palavra em nepali que quer dizer Deusa do céu. Você acreditou? A história parece plausível, mas acabei de inventá-la. Deusa do céu é mesmo o nome dos nepaleses para a sua montanha sagrada, mas só eles sabem como se pronuncia. Everest, o nome oficial, vem de sir George Everest, líder da excursão inglesa que mapeou a região no século 19.

Agora que se volta a falar em legislar sobre o uso de estrangeirismos na nossa língua é bom lembrar que quem escolhe o nome das coisas é quem tem o poder para isso, não necessariamente o direito. O primeiro homem a enxergar o novo mundo foi Rodrigo de Taina, vigia na “Pinta”.

Ele teria direito ao prêmio prometido por Cristóvão Colombo a quem visse terra primeiro. Mas o comandante alegou que ele, Colombo, vira antes uma luminosidade que emanava da terra e assim pressentira a presença da América – que achava que fosse a Índia – antes que ela aparecesse.

Colombo ficou com o prêmio e a glória porque, afinal, a ideia de chegar ao Oriente pelo Ocidente era dele, e por que a História era dos homens predestinados como ele. Dos que tinham o poder de dar nome às coisas, não dos insignificantes Rodrigos de Taina do mundo. Quando Portugal e Espanha assinaram o Tratado das Tordesilhas, fizeram como Colombo: se apossaram de terras antes de vê-las. Começaram colonizando uma hipótese.

Colombo descobriu qual era o nome que os nativos davam às coisas, o que não o impediu de dar nomes novos, e de se apossar da sua história e dos seus costumes, assim como da sua geografia.

E como ele pensava que estava nas terras do Grande Khan, estava se apossando de duas histórias, a dos selvagens e a do outro império, simultaneamente. Cabral e a sua turma, que se saiba, não se interessaram em descobrir se as coisas aqui já tinham nome. Batizaram seu Everest, no caso o Monte Pascoal, antes de pisarem na praia.

Dar nome às coisas é possuí-las. A colonização começa pela linguagem. Os estrangeirismos na nossa língua mostram quem tinha o poder sobre nossas vidas, combatê-los é uma maneira de dizer que o domínio acabou, ou deve acabar. Porém, ai porém: acontece o contrário, a invasão aumenta. Tentar legislar contra esse tsunami é uma batalha perdida.

Tem gente demais que confunde colonizado não com submisso mas com moderno. E dê-lhe “sale” em vez de liquidação e “delivery” em vez de entrega. A única coisa a fazer é esperar que, em algum momento, deem-se conta do ridículo.


01 de maio de 2011 | N° 16687
PAULO SANT’ANA


A volta de Delúbio

Está sendo refiliado ao Partido dos Trabalhadores o ex-tesoureiro do PT, Delúbio Soares.

Delúbio Soares foi expulso do PT em 2005, depois de comprovada sua participação como coordenador do esquema de pagamento de propinas de R$ 55 milhões, dinheiro público, a inúmeros parlamentares.

O escândalo derrubou toda a cúpula do PT, inclusive o então ministro da Casa Civil, José Dirceu.

Agora, Delúbio Soares estava sendo reconduzido, na sexta-feira, à refiliação em seu partido de origem.

Delúbio tomou a palavra na reunião do PT, na semana passada, apelando em tom emocional: “Eu sou PT de formação e de coração. Portanto, quero voltar a militar no partido. A minha identidade política é a mesma do PT, preciso da minha identidade política de volta”.

Delúbio ficou emocionado em sua fala, clima que se transmitiu a toda a reunião.

Delúbio conteve o choro. O deputado federal Jilmar Tatto (PT-SP) disse comovido: “Eu sou católico. Para uma pessoa obter um perdão é preciso quatro coisas: o pecado, o arrependimento, a penitência e a promessa de que não vai pecar de novo. Perfeito, só Deus! As críticas à aprovação da volta de Delúbio não seguram dois dias de manchete de jornal”.

O senador Eduardo Suplicy, tido como uma das reservas morais do Partido dos Trabalhadores, declarou a respeito:

– Recaiu sobre Delúbio algo que foi responsabilidade do conjunto do partido. Ele sofreu punição por estar como tesoureiro, foi expulso, e, como não sou a favor da punição perpétua e, na medida em que ele se compromete a agir com correção, sou favorável à refiliação. Todos podem errar, o importante é aprender com os erros.

De certa forma, grande parte do PT admite que quase todo o partido acabou envolvido no escândalo.

E todos se compadecem com a situação de Delúbio Soares, que acabou expiando os erros junto de apenas poucos outros, entre eles o ex-deputado José Dirceu.

E a tese de que a punição não pode ser perpétua, de que toda pessoa que errou tem a oportunidade da regeneração, do perdão bíblico, acabou tomando conta do diretório.

E assim o PT se adianta à decisão penal do Supremo Tribunal Federal, que procrastina o julgamento dos envolvidos no mensalão, que pode se verificar em meados de 2012.

Delúbio Soares está de volta.

E se repercutiu o escândalo em 2005, fatalmente irá repercutir a refiliação de Delúbio.

Cá para nós, o que Delúbio tem de pior do que José Dirceu, que se envolveu no caso tanto quanto ele e vem se notabilizando, desde o escândalo, como uma eminência parda do Partido dos Trabalhadores?

Justiça se faça ao governador Tarso Genro, que à época em Brasília mostrou destemor ao romper intelectual e eticamente com os envolvidos, denunciando e pedindo punição dos culpados.


01 de maio de 2011 | N° 16687
DAVID COIMBRA


Lendas do Gre-Nal

Seu nome era Black. George Black. Foi ele quem pela primeira vez cabeceou uma bola no Rio Grande do Sul. Era um Gre-Nal, a bola de couro veio alta na área do Inter, Black saltou feito um cabrito montês e, como um cabrito montês, desferiu-lhe uma testada. Gol do Grêmio. Ou não? Valia aquilo, de botar a cabeça na bola? Os colorados protestavam, diziam que cabeça não podia. Os gremistas juravam que podia. O juiz parou o jogo, ficou discutindo, indeciso. Marcava falta ou dava o gol? Parece que aquele Gre-Nal terminou em briga.

Com Fernandão, cabeçada valia. E como! Fernandão era de uma linhagem de cabeceadores, gente da estirpe de um Escurinho, de um Jardel, de um Bodinho, de um Neca. Estreou marcando gol de cabeça em Gre-Nal, justamente o milésimo gol da história do clássico.

Mas Fernandão tinha um segredo: uma placa de platina implantada na testa. Dizem que era de propósito. Não foi acidente nem nada, Fernandão mandou um médico blindar sua testa para com ela dar verdadeiros chutes na bola e assim se consagrar como maior cabeceador dos tempos modernos do futebol. Será verdade?

O Aírton não tinha o crânio reforçado por metal, mas, num único Gre-Nal, cabeceou 40 bolas na área do Grêmio. Quarenta! Os jogadores do Inter cruzavam, ele saltava mais do que todo mundo e, numa chicotada impulsionada pela nuca, mandava a bola lá para o meio do campo. Saiu do jogo com a cabeça roxa e inchada, os ouvidos zunindo, mas com o seu gol intocado como uma noviça.

Já o Carlitos tinha uma estratégia para paralisar os zagueiros do Grêmio nas bolas aéreas. O Carlitos era pequeno, menos de um metro e setenta. Mas jamais, em tempo algum, alguém fez tanto gol em Gre-Nal. E gol de cabeça.

Porque, quando a bola vinha batendo asas do ângulo do escanteio, o Carlitos se posicionava solertemente atrás do zagueirão. No momento em que ela fazia a curva para aterrissar na grande área, Carlitos espetava o indicador em riste exata, precisa e cruelmente no esfíncter do adversário, que, atacado assim à traição, transformava-se em estátua de sal, imóvel e inofensivo, permitindo que o atacante do Inter testasse carinhosamente a bola para o gol.

Agora: nunca uma bola veio de tão alto, na história dos Gre-Nais, como aquela daquele clássico nos anos 40. Os organizadores da festa decidiram fazer uma promoção: pouco antes da partida, um teco-teco sobrevoaria o estádio e largaria, lá de cima, uma bola no meio do campo. Com aquela bola egressa do firmamento seria jogado o jogo. E lá estava o aviãozinho fazendo barulho, como se fosse o Enola Gay sobrevoando Iroshima, e os jogadores no solo, posicionados, esperando pelo seu instrumento de trabalho. Então o piloto deixou a bola cair.

Ela veio zunindo de mais de cem metros de altura, veio que veio com a velocidade aumentando a cada metro, transformada num míssil. Do solo, o centromédio do Inter, o argentino Felix Magno, calculou a trajetória e se preparou.

Quando a bola ia chegando, ele a aparou de cabeça. Foi como se tivesse aparado um cofre. Felix Magno desmaiou no ato, os jogadores correram para acudi-lo. Minutos depois, acordou nos braços de Carlitos e balbuciou:

– Tchê, gurizito, estoy mareado...

Avião era coisa rara na cidade. Foi por isso que todos olharam para o céu, todos, juiz, jogadores e torcida, todos ergueram os queixos quando um aviãozinho passou sobrevoando o campo dos Eucaliptos num importante Gre-Nal de 1935. Todos, menos um: o ponta Castilho, do Grêmio, que estava com a bola no pé. Ele aproveitou a distração geral e chutou para o gol. O Grêmio venceu por 1 a 0 no que entrou para a história como o Gre-Nal do avião.

Verdade. Juro.

Mas, ainda que nem tudo disso tenha sido verdade, vale a história. O que conta é a lenda. O que conta é a mística do Gre-Nal.

Ruth de Aquino

O bullying do Senado

Somos vítimas de bullying político, moral e cívico. E nada fazemos. O país parece anestesiado pela overdose real de William e Kate naquela ilha ao norte do Equador. Ao sul, em nossa república tropicalista, assistimos passivamente a uma das cerimônias mais vergonhosas do Senado. Renan Calheiros acaba de entrar para a Comissão de Ética. Roberto Requião arranca gravador de repórter para apagar sua própria entrevista. Tudo com o beneplácito do padrinho-mor José Sarney.

Tapa na cara, bofetada na nação, cinismo institucional. Assim cientistas políticos e especialistas em ética classificaram as últimas ações do Senado. Roberto Romano, da Unicamp, declarou: “Se o Senado fechar amanhã, ninguém vai sentir falta, salvo os lobistas e os políticos que querem atingir o Tesouro Nacional por meio da troca de favores”. Claudio Abramo, diretor da ONG Transparência Brasil, foi além: “O Senado não precisa existir, não tem função. Não há nada que ele faça que a Câmara não possa fazer. Pode desaparecer sem prejuízo e seria até mais barato”.

Essas reações podem parecer destemperadas numa democracia que atribui seu equilíbrio à existência de duas Casas: a Câmara e o Senado. Mas respeito e credibilidade não são automáticos. Oito senadores indicados para a Comissão de Ética respondem a inquéritos ou processos no Supremo Tribunal Federal. A missão desse grupo “seleto” é vigiar e garantir o decoro dos 81 senadores. No novo conselho, muitos são amigos íntimos, alguns conterrâneos, do maranhense Sarney. O próprio Sarney esteve envolvido em 11 processos no ano passado – mas foi entronizado como “homem não comum” pelo ex-presidente Lula.

O presidente da Comissão de Ética, João Alberto, do PMDB, governou o Maranhão em 1990. Nesse ano, uma lei estadual doou um prédio histórico à família Sarney. Quem é João Alberto para ser o guardião do decoro do Senado? Quais são suas credenciais para o país acreditar em seu slogan “Vamos cortar na nossa própria carne”? Nas três vezes em que ocupou o mesmo cargo, João Alberto engavetou todos os processos abertos na Comissão de Ética. No Brasil de hoje, “formação de quadrilha” deixou de ser acusação.

Mais escandaloso é o resgate do líder do PMDB, o alagoano Renan Calheiros. O conselho aprovou em 2007 sua cassação, rejeitada pelo plenário. Calheiros enfrentou denúncias de quebra de decoro, corrupção, desvio de dinheiro público, sonegação de bens, uso de laranjas. Renunciou à presidência do Senado e foi absolvido pelos pares.
Oito senadores indicados para a Comissão de Ética estão enrolados na Justiça. É um tapa na cara da nação

A denúncia mais ruidosa contra Calheiros foi a de usar o lobista de uma construtora para pagar uma pensão mensal a Mônica Veloso, com quem teve uma filha fora do casamento. Ele alegou que alimentava a menina com a venda de bois nas suas fazendas. As notas fiscais estavam irregulares.

Mônica teve seus 15 minutos de fama, posou nua e hoje apresenta um programa de carros, Vrum, na televisão mineira.

Ela deixou imortalizada em seu livro uma descrição humana do amante. Segundo Mônica, Renan fingia que ia se separar. “No início do namoro, ele estava meio gordinho, mas fez dieta.” O casalzinho ia a festas, e Mônica era tratada “com deferência” no Senado. Para Renan, ela era “uma rosa única entre milhões de rosas”. O então presidente do Senado cantarolava “Eu sei que vou te amar” de noite ao telefone, e queria pular Carnaval de rua com ela na Bahia. Mônica chamava Renan de “docinho”, “de tão meigo que ele era”, mas ele entrou em pânico quando ela disse estar grávida.

Tudo o que Calheiros possa ter de “docinho”, seu colega de Senado Roberto Requião tem de truculento. Arrancou na segunda-feira um gravador das mãos de um repórter. Irritou-se com uma pergunta procedente: ele abriria mão da aposentadoria de R$ 24.117 que recebe como ex-governador do Paraná?

Requião só devolveu o gravador após apagar a entrevista. Sarney o defendeu: “Requião é um cavalheiro”. Na tribuna, o senador disse ser vítima do “bullying de uma imprensa às vezes provocadora e muitas vezes irresponsável”.

Bullying é o que os senhores, senadores, resolveram praticar contra quem paga seus subsídios.


30 de abril de 2011 | N° 16686
NILSON SOUZA


Conto sem fada

Deu no jornal: uma senhora de 92 anos, que se alfabetizou aos 85, cursa o segundo ano do Ensino Médio numa escola pública do interior do Estado e, todos os meses, separa R$ 10 de sua aposentadoria para fazer a festa de formatura no ano que vem.

Chama-se Maria, assim como tantas, mas ganhou em algum momento de sua sofrida vida o apelido de Dona Benta – pra lá de emblemático, se lembrarmos da personagem célebre de Monteiro Lobato, uma avó sábia e bondosa, que contava histórias para as crianças e também aprendia com elas. Pois dona Maria, como a mãe de Lula, a minha e todas as demais, nasceu analfabeta. Só que, ao contrário da maioria, foi obrigada a permanecer iletrada, pois o pai a proibiu de ir à escola com os irmãos, sob o argumento de que meninas não deviam aprender a escrever para não cair na tentação de mandar cartas de amor para os namorados.

Ainda assim, dona Maria, que provavelmente ainda não era Benta, casou, teve filhos e continuou a trabalhar na roça e nas lides domésticas, sempre longe dos livros e dos cadernos. Só quando os filhos cresceram e o marido morreu é que ela pôde voltar à escola. Concluiu o Ensino Fundamental pelo programa de Educação de Jovens e Adultos e agora cursa o 2º ano do Ensino Médio. Vai longe esta menina.

A história desta Maria tardia tem lá o seu encanto, embora fique reservada a um canto de página neste momento em que todos os olhares acompanham o casamento real (ou irreal?) dos príncipes ingleses. São fatos incomparáveis, sei disso. Também acho que monarquia é coisa do passado, mas, se os ingleses gostam e aceitam sustentá-la, tudo bem.

Além disso, o conto de fada, como ensinou o psicanalista Bruno Bettelheim, tem lá a sua utilidade. Mexe com sentimentos, ensina crianças e adultos a lidar com seus medos e conflitos. Sempre gostei deste tipo de literatura. Fui – e sou – um leitor compulsivo dos Irmãos Grimm e de Hans Christian Andersen. Portanto, acho que podemos prestar atenção e nos emocionar sem pruridos nem remorsos com o esplendor da união entre William e Kate.

Mas acredito que esse conto sem fada de dona Benta também tem muito a nos dizer. Não sei se os príncipes recém-casados serão felizes para sempre. Tomara que o sejam. Tenho certeza, porém, de que a nossa jovem leitora será muito feliz com a habilidade recém adquirida, que lhe permite ler sobre o casamento real e escrever sobre seus próprios sonhos e fantasias.

Pensando bem, talvez haja uma fada nesta história – uma fada de verdade, poderosa e acessível a quem a busca com fé. Chama-se Persistência.


30 de abril de 2011 | N° 16686
ANTONIO AUGUSTO FAGUNDES


A literatura regionalista no Rio Grande do Sul - final

No meio da década de 20, os gaúchos são surpreendidos pela Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, um caldeirão de tropicalismo, antropofagia, tenentismo, cinema e Deus sabe mais o quê. No Rio Grande do Sul, imediatamente se nota a influência da nova poesia, com Vargas Neto, Pery de Castro, Augusto Meyer e Manoelito de Ornellas fazendo versos gauchescos dentro do espírito modernista.

Depois, no rastro de Ramiro Barcellos (antes tarde do que nunca), Waldemar Corrêa, José de Figueredo Pinto, Balbino Marques da Rocha e, correndo em trilho apartado, Aureliano de Figueiredo e Pinto, Nogueira Paz, Amândio Bicca e Glaucus Saraiva, este, para mim, o mais impressionante.

Vem o Movimento Tradicionalista, a partir de 1948. Surgem poetas como Nitheroy Ribeiro, Jaime Caetano Braum, Luiz Menezes, eu mesmo, Apparicio da Silva Rillo, José Hilário Retamozo, Guilherme Schutz Filho, entre outros.

Concorrendo em faixa própria na mesma época havia o poeta comunista Lacy Osório, sempre fiel às origens, o poeta do grupo Quixote Silvio Duncan e o poeta negro Oliveira Silveira, gauchesco e originalíssimo. Mozart Pereira Soares é a voz gauchesca do verso missioneiro. Hugo Ramirez é a própria Estância da Poesia Crioula encarnada.

Frisa-se: a poesia regionalista, sempre erudita, não é a poesia feita pelo gaúcho, mas para o gaúcho. Aliás, pouquíssimos desses poetas aqui citados são ou foram campeiros, bons conhecedores das lides de estância ou rancho. Em realidade, são homens de cidade, onde se educaram e de onde, com saudade, evocam um pago real ou idealizado.

Houve, faz tempo, quem prognosticou o fim da poesia gauchesca pelo esgotamento de modelo de estância e rancho: os poetas remanescentes da Estância da Poesia Crioula, que teriam conhecido o campo gaúcho “comme Il faut”, estavam morrendo. Duas ocorrências, porém, salvaram a poesia crioula: nem os poetas mais antigos eram tão campeiros assim, nem o modelo em discussão dependia tanto deles. A poesia campeira tinha e tem vida própria.

Com o surgimento do périplo dos festivais da canção gauchesca, a poesia crioula simplesmente passou para os jovens compositores “a lo mejor” descompromissados com a vivencia gauchesca, como Luiz Coronel, Gilberto Carvalho, Airton Pimentel, Dilan Camargo, Nilo Bairros de Brum, Mauro Morais, Vaine Darde, mas sobretudo esse magnífico Elton Saldanha, um poeta de rara sensibilidade, que seria poeta em qualquer rincão do mundo, herdeiro de bardos e aedos, menestréis e trovadores.


30 de abril de 2011 | N° 16686
PAULO SANT’ANA


Nova Lei da Abolição

Eu sou ferreamente convicto de que existe preconceito racial no Brasil.

Tem mais: penso que é violento o preconceito racial no Brasil. Atinge em cheio a população negra nacional.

Sendo assim, a única forma de os negros não serem discriminados é a de se cruzarem com brancos.

Se uma mulher negra casa com um branco, está decretada a mestiçagem e o filho do casal não será discriminado como negro.

Se isso é verdade, os negros que não se cruzam com os brancos estão condenados, perpétua ou eternamente, à discriminação. Não escaparão da cor da sua pele e nunca deixarão de ser considerados inferiores pela sociedade.

Ou seja, os negros são também discriminados por terem optado pela pureza racial.

***
Eu sei que as leis de cotas raciais são “antidemocráticas”. Por elas, um negro pode obter uma vaga na universidade atingindo no vestibular notas inferiores às de um branco que por isso, ocasionalmente, venha a ser barrado.

Ainda assim, sou favorável às leis de cotas. Porque só vindo a mudar urgentemente o quadro dramático de inserção dos negros na sociedade é que se pode aos poucos avançar no ideal da igualdade.

Se não for assim por medidas radicais, como são as leis das cotas, séculos e séculos de rebaixamento dos negros não serão vingados nos quadros sociais e permanecerá para todo o sempre o desfavor dos negros.

Quem acha que os negros concorrem em condições iguais às dos brancos no mercado de trabalho deveria ter lido a notícia que vem lá do Rio de Janeiro: a Educafro, ONG de frei David dos Santos, promete para as datas em torno de 1º de maio, “ocupações pacíficas” nas Lojas Americanas.

Entre os objetivos das ocupações estão o preenchimento por negros de mais cargos de chefia nas Lojas Americanas e de que pelo menos 20% das bonecas à venda e expostas nas lojas sejam negras.

Que gozado, eu nunca tinha notado que entre as dezenas de tipos de bonecas Barbie poucas eram negras.

E nesse particular deve ser elogiada profundamente a política racial atualmente imposta na Rede Globo: na maioria de suas novelas, de profundo apelo popular, grande parte dos galãs e heroínas é interpretada por negros.

A coisa mais natural numa novela da Globo é um negro fazer par romântico com uma branca.

E há casos em que um personagem negro é disputado arduamente por duas ou três brancas.

Admirável integração! E visivelmente os negros são colocados de propósito nas novelas, visando a ressarcir o processo histórico de domínio sólido dos brancos nos elencos das novelas.

Nem tudo está perdido. Há de vir o dia em que no meu país os negros sejam em tudo iguais aos brancos.


30 de abril de 2011 | N° 16686
CLÁUDIA LAITANO


Entre a guilhotina e os biscoitos

Para agradar a apocalípticos e integrados, o jornal britânico The Guardian preparou ontem, para sua versão online, uma área em que “realistas” e “rebeldes” podiam manifestar suas opiniões a respeito do casamento (e inclusive escolher presentes virtuais para os noivos) conforme sua inclinação em relação ao assunto: do deslumbre absoluto com a pompa, a circunstância e os chapéus enfeitados ao desprezo mais raivoso com relação à monarquia britânica, ao circo midiático que se forma em torno de eventos desse tipo e, de quebra, “contra tudo isso que está aí” – do Renan Calheiros ao aquecimento global.

Na lista de presentes sugeridos para a turma dos “realistas”, representados por um coração com os rostos dos dois pombinhos (o que mais...), apareciam um conjunto de embalagens de tuperware com o brasão da família real, biscoitos finos e uma biografia da Rainha Vitória.

Na lista dos presentes “rebeldes”, simbolizados por uma efígie de Che Guevara (quem mais...), as opções eram as chaves de um apartamento no exílio de Elba, um kit guilhotina para montar em casa e uma biografia de Charles I da Inglaterra – monarca executado em 1649. Entre a guilhotina e os biscoitos, a maioria dos leitores do The Guardian preferiu cortar os jovens pescoços reais – pelo menos figurativamente.

Quem preferiria ter passado a sexta-feira escondido no calabouço de um castelo medieval, para não ter que ouvir falar em casamento, em geral alega um de dois motivos (ou os dois): entojo com a superexposição do assunto ou desinteresse. Já as justificativas para o fascínio da realeza são tantas quanto os diamantes na tiara da noiva. Muita gente, como eu, deve ter acordado mais cedo ontem movida por um sentido de simetria com o passado.

O mesmo impulso que nos faz, ao visitar uma cidade pela segunda vez depois de muitos anos, querer rever os mesmos lugares, medindo não apenas o que mudou na paisagem, mas o que, em nós, se modificou com o passar do tempo.

Aos 15 anos, assistir ao casamento de uma princesa que tinha quase a minha idade me pareceu um programa obrigatório. Dormimos na mesma casa, eu e mais três amigas, para acordar cedo no outro dia e ver a cerimônia enroladas no cobertor, tomando Nescau e comendo sanduíches. Não lembro de muita coisa, mas tenho muito presente o impacto causado pelo vestido de Diana.

Não porque era especialmente bonito, mas porque era diferente de todos os vestidos de noiva que eu já tinha visto: estranho, exagerado, fabuloso. Já o vestido de Kate foi o oposto disso tudo: simples, discretamente sensual e quase previsível de tão elegante. O que se viu no altar ontem não foi uma plebeia esforçando-se para alcançar os arquétipos da realeza, mas uma mulher comum tratando de respeitar os códigos de uma família complicada. Bom para ela, ruim para o espetáculo.

O mundo, a realeza, as mulheres – e eu – mudamos muitos nesses 30 anos. Mas o que mais fez falta ontem foi o Nescau da minha mãe.

sexta-feira, 29 de abril de 2011


Jaime Cimenti

Os míticos paraísos terrestres

A questão do paraíso aqui na terra ou no além e, especialmente o paraíso terrestre, tornou-se um mito e, ao mesmo tempo, sua história, sem dúvida, tornou-se um dos pilares da modernidade.

Como interpretar, por exemplo, as palavras do Gênesis, da Bíblia, sobre a criação do mundo? Stendhal, autor do clássico O vermelho e o negro, falando sobre a beleza, disse que o Paraíso não passa de promessa de felicidade e a nostalgia de uma origem perdida e que essa promessa e essa nostalgia designam uma falta, uma ausência, uma brecha na natureza humana.

No ensaio O Paraíso Terrestre, do historiador e conferencista escocês Milad Doueihi, essas e outras muitas questões são abordadas através de uma proposta inovadora. Milad reexamina o tema antigo como utopia permitindo compreender, de que forma, na Idade Moderna, essa utopia sustenta uma ética universal.

O autor narra os momentos-chaves no uso filosófico do conceito de Paraíso e, para tanto, segue os rastros das transformações da figura do Éden, de Santo Agostinho a Nietzsche, passando pelos escritos de Lutero, Bayle, Leibniz, Spinoza e Kant. Kant dizia ser o Paraíso o primeiro momento do uso da razão e do progresso na história do Homem.

Nietzsche descrevia o conceito de modo mais sombrio, como a personificação do conflito entre a humanidade e suas crenças. De fato, o Paraíso assombra o Ocidente bíblico. O Jardim do Éden representa, para muito além do imaginário religioso, uma estrutura de ordem e Milad não pretendeu, em sua obra, apenas escrever mais uma história do Paraíso e de suas representações.

Ele vai bem mais longe. Mostra como os debates modernos a respeito da natureza do mal, do livre-arbítrio e da origem da linguagem estão relacionados às interpretações filosóficas sobre o Paraíso.

Doueihi mostra que um entendimento mais completo sobre o Paraíso pode responder questões fundamentais à sociedade, ao mesmo tempo em que pode abalar e revisar antigas crenças da humanidade. Como se vê, tema e obra são profundos.

Os leitores poderão escolher com mais consciência, conhecimento e liberdade suas crenças e descrenças sobre paraísos, Deus, Bíblia, fé e outras questões milenares relevantes. Difel, 240 páginas, mdireto@record.com.br.

Jaime Cimenti

Narrativa de um amor perturbador

Hotel Íris, romance da várias vezes premiada escritora japonesa Yoko Ogawa, nascida em Okayama em 1962 e autora de mais de 20 romances lançados desde 1988 é, acima de tudo, a narrativa de um amor perturbador, envolvendo uma jovem belíssima, filha da dona de um pequeno hotel, localizado numa cidade costeira, e um homem mais velho, arrogante, tradutor de romances russos e com passado complicado.

Yoko Ogawa recebeu prêmios por seus romances, traduzidos para inúmeros idiomas e adaptados para o cinema, e se notabilizou por conseguir expressar os mais obscuros pensamentos através do estudo exaustivo de suas personagens, especialmente mulheres.

Hotel Íris é dos seus livros mais conhecidos e certamente um dos mais sexualmente ousados, o que garantiu à autora uma posição de destaque na literatura contemporânea.

Mari, a protagonista, uma jovem de 17 anos que trabalha quase em tempo integral no hotel, conhece um senhor que mora em uma ilha próxima e é cercado de rumores sobre ter matado a própria esposa. Ela se apaixona por ele, mesmo depois de um incidente envolvendo o homem e uma prostituta, no hotelzinho, num dia de baixa temporada.

A prostituta saiu do apartamento aos gritos, depois de insultada pelo homem distinto, elegante e violento, tirando a paz de Mari, que estava na silenciosa e calma recepção. Fascinada pela arrogância daquele homem misterioso, que foi conhecer realmente dias depois, Mari entra de cabeça numa trajetória de grande desejo, acompanhada de dor e sofrimento.

Ela vive com o velho tradutor solitário um amor sem limites, no qual o corpo está muito longe de ser apenas uma brincadeira. Como se vê, mesmo com o sopro do novo, a autora insere-se na melhor tradição romanesca japonesa, onde os sentimentos e as narrativas são trabalhados ao extremo, onde as aventuras corporais e amorosas atingem níveis insólitos.

Qual a necessidade humana que leva uma jovem linda a suportar tudo, com um homem bem mais velho e sádico? O que levava Mari a procurar o seu algoz dia após dia, mesmo sabendo de seus desvios e de seu passado suspeito?

Isso e mais os leitores vão tentar decifrar, enquanto assistem às peripécias da delicada jovem. Leya, 206 páginas, tradução do francês de Marly Peres - www.leya.com.


29 de abril de 2011 | N° 16685
ARTIGOS - Marcelo Victor*


Quintana e a internet

Reza a lenda que os alegretenses resolveram homenagear o filho da terra Mario Quintana colocando um bronze na praça central da cidade. Ele, que parece que tinha lá suas diferenças com os conterrâneos, elegantemente declinou do convite, mas não escapou do bronze: “Agradeço a vocês, mas um engano em bronze é um engano eterno”. E essa bela frase lá está, na Praça de Alegrete, um engano involuntário do próprio Quintana, eternizado.

O bronze e o mármore já foram os grandes guardiões da eternidade. Reis e imperadores tentavam permanecer por meio deles, e nada parecia mais imortal do que esses monumentos através dos séculos. Hoje, frente à fúria dos vândalos, à depredação dos parques e ao descaso das autoridades, descobrimos que o bronze e o mármore também podem morrer.

Muitos monumentos da Redenção, em Porto Alegre, e de muitos outros parques por todo o país estão mudos e dementes, não dizem mais nada porque levaram suas frases, seus bustos e seu sentido. Juntaram-se à precariedade da carne, para o desgosto dos poderosos, mas também dos apreciadores da História, da beleza e dos parques.

A eternização dos enganos e dos acertos foi transferida para um veículo inesperado porque aparentemente precário, a internet. Toda, ou quase toda a produção cultural da humanidade já está lá. Nossos grandes acertos, nossa ciência, nossa arte e literatura, tudo.

A fotografia e a imagem, que já foram consideradas frágeis e superficiais, são hoje o veículo preferencial que o indivíduo comum utiliza para alcançar a posteridade. Com a proliferação das câmeras em celulares e dos computadores, nunca houve tanta oportunidade para a exposição pessoal.

E com isso vieram novos problemas. O que parecia um grande aliado do nosso narcisismo pode rapidamente transformar-se em desgraça permanente. Porque as imagens e escândalos capturados pelas câmeras são indestrutíveis na internet, superando em muito o duro bronze e o alvo mármore. O que se faz na intimidade nem sempre merece tanta publicidade.

Não sendo reis ou imperadores, conseguimos mais do que muitos deles: permanecer para sempre, ao menos enquanto houver um futuro tecnológico e uma civilização de computadores, eternizados. E talvez não por nossas façanhas, mas pelos nossos erros e bobagens. Isso é especialmente relevante para crianças e adolescentes, jogados hoje muito cedo na selva da web sem as devidas precauções e recomendações por parte dos pais.

Nos Estados Unidos, propuseram a troca do nome próprio para com isso descolá-lo de imagens constrangedoras ingenuamente produzidas e divulgadas. Erros adolescentes não seriam então facilmente descobertos por possíveis empregadores. A educação para a preservação da própria imagem é uma necessidade desde a infância ou o início da navegação no mundo virtual. Porque um erro na internet é, esse sim, um erro eterno.
*Psiquiatra


29 de abril de 2011 | N° 16685
PAULO SANT’ANA


A arte de esperar

A gente tem de se conformar com o engarrafamento. Em realidade, a vida é feita de espera.

A primeira vez que esperei de verdade foi quando, moço ainda, comprei o meu primeiro imóvel: um apartamento para morar com a família. O prazo de pagamento era de 20 anos (240 meses).

Era no tempo em que havia o Banco Nacional de Habitação, uma forma para facilitar a aquisição da casa própria.

Mas vejo só agora o horror: levar 20 anos para adquirir um imóvel.

Acho que foi ali que aprendi a esperar.

Esperei para me formar em Direito, levei 10 anos. Esperei para ser delegado de Polícia, fui inspetor de Polícia durante 17 anos.

Esperei para ter filhos; depois de longa espera, esperei para ter netos.

Antes de ter carro, esperei durante muitos anos o ônibus; antes, quando ainda criança, esperava o bonde.

Espero que cozinhem minhas comidas, espero que gelem minhas bebidas. Plantei um abacateiro e esperei muitos anos para que ele desse abacates.

Esperei durante cinco horas, num nervosismo ímpar, para subir ao palco com Julio Iglesias.

Esperei durante muitos anos para que trocassem minha coluna das páginas de esporte para esta página na qual agora me encontro. Deus sabe que espera angustiante.

Vejo só agora, neste balanço de esperas, que sempre houve desfecho para todas as minhas esperas. E estranhamente concluo que foram bons os desfechos de todas as esperas, com raras exceções.

Nunca esperei ser rico, por exemplo. Ou apostar na Mega Sena, como aposto, é esperar uma fortuna? Acho que não: entre as esperas não se pode incluir os sonhos. Esperar é uma coisa, sonhar é outra.

Esperar implica alguma materialidade no desejo. Sonhar já entra noutra esfera. É tão grande o que se pretende, que nem se exige do destino que ele nos dê tamanho contentamento. Ou euforia.

Em verdade, lhes digo, das coisas que me aconteceram na vida, uma só, uma única não esperei: a velhice.

Ela foi chegando sorrateiramente, sem prenúncio, sem aviso, com leves indícios: uma vontade de não tomar banho pela manhã foi o primeiro pipocar da velhice.

Logo em seguida, foi uma dificuldade em sair do táxi, as dobradiças do corpo da gente parecem que estão enferrujando. E as moças, em toda a parte que se vai, começam a nos chamar de “senhor”.

Velhice não tem espera, ela ataca à traição. Velhice é a pior doença. E ela ainda carrega consigo a pior maldição: é quando se tem pela primeira vez a ideia da morte.

Mas esperar é sempre não a minha sina, mas a de todas as pessoas. Esperar que a pessoa amada diga sim. Esperar de quem nos ofende gratuitamente uma explicação.

Esperar que nunca um amigo pronuncie uma recusa.

E uma espera que confesso me consumiu sempre em toda minha vida: a espera de uma reconciliação.

Há ex-amigos que morreram brigados comigo, foi em vão a espera de que tivéssemos feito as pazes. Muito triste, desolador...

A vida só é feita de esperas. Desde as mais curtas até as mais longas.

E a mais dolorosa, a pior de todas as esperas, é a inútil.


29 de abril de 2011 | N° 16685
DAVID COIMBRA


As coisas que não vou escrever sobre o RS

Estava decidido a escrever que os gaúchos acreditam em bandidos e mocinhos. Que, para os gaúchos, a vida é um Gre-Nal. As coisas são boas ou más, certas ou erradas. É uma existência sem matizes, sem gradação. Tudo é branco ou preto. Donde, o entredevoramento histórico dos rio-grandenses.

O governador do PT faz algo, o sucessor anti-PT vai lá e desfaz. E vice-versa. O gaúcho acredita MESMO que alguém se alça ao poder só para praticar o Mal. Obviamente, o alguém que é do outro partido.

Então, esse alguém não é digno de nenhuma colaboração, para ele só se reserva a oposição explícita e a sabotagem implícita. Pobre Olívio, pobre Yeda, pobres todos os que tentam construir algo no Rio Grande. Eles nunca são julgados com condescendência, para eles não existe a compreensão racional, média e fria. Não. Para eles só há o amor do simpatizante e o ódio do inimigo, e nenhum deles vale muito, porque ambos são incondicionais.

Também estava decidido a escrever sobre o regionalismo obtuso do gaúcho. Em muitos outros lugares do Brasil, como na Bahia, o regionalismo serve para universalizar a cultura, para levar a Bahia ao mundo. Aqui, serve para isolar o Estado do mundo. Não é regionalismo, é provincianismo. Dia desses, um jogador do Botafogo reclamou de um juiz gaúcho, desabafando:

– Eles nem querem fazer parte do Brasil...

Foi criticado pelos gaúchos que não viram, naquela manifestação inocente, o que o resto do Brasil vê nos gaúchos.

Estava decidido também a escrever que essas são as causas do estrondoso atraso do Rio Grande do Sul. Quem quer que visite outros Estados da federação se espanta com isso. As coisas, no Brasil, estão acontecendo. Aqui não. Aqui as estradas estão congestionadas, a Educação regride, as ruas se tornam mais perigosas e os projetos, quaisquer projetos, dormem décadas nas gavetas dos gabinetes. O Rio Grande do Sul ideologizado, ranzinza, rançoso, antropofágico, anda para trás.

Pois bem, estava decidido a escrever isso tudo, mas afinal resolvi que não. Resolvi escrever sobre o Rio Grande do Sul que funciona. Encontrei um. Está lá no alto, na Serra: o complexo Gramado & Canela.

Você pode não gostar de ir a Gramado, mas terá de reconhecer, se lá for: lá existe um movimento orgânico pelo bem comum. A comunidade inteira se envolve no projeto da cidade. Ou da região.

A forma como você é tratado nos hotéis e restaurantes, a forma como os motoristas se comportam no trânsito, tudo faz parte de uma consciência coletiva. As pessoas, em Gramado e Canela, trabalham unidas por Gramado e Canela, numa comunhão do poder público com a iniciativa privada que é ágil e funcional.

Como eles conseguiram? Como criaram esse oásis de entendimento nesse deserto de eterna oposição? Temos de descobrir isso. Temos de estudar esse fenômeno. Então, talvez haja uma esperança de vida jovem para esse reumático Rio Grande do Sul.

quinta-feira, 28 de abril de 2011


ELIANE CANTANHÊDE

Título: raposas ou galinheiro?

BRASÍLIA - "O Congresso faz parte da sua história. Mudou para Você, Mudou para o Brasil", diz a campanha anunciada ontem pela equipe de Criação e Marketing do Senado Federal para "aproximar o cidadão à atividade legislativa".

Já na internet, a campanha badala avanços aprovados pela Casa: adoção, licença-maternidade, proteção à infância e segurança no trânsito (homenagem a Aécio?).

Tudo muito bom, tudo muito bem, não fosse a falta de oportunidade, que derruba qualquer peça de marketing. Não é que a campanha para aproximar o cidadão do Senado foi anunciada dois dias depois de Roberto Requião arrancar o gravador de um repórter e no dia em que João Alberto foi eleito presidente do novo Conselho de Ética?

Encarregado de apurar acusações de falta de decoro de senadores, o Conselho ficou do jeitinho que José Sarney gosta. A começar do presidente, João Alberto (MA), tão inexpressivo quanto conveniente ao conterrâneo Sarney, alvo de 11 processos no órgão em 2010.

A lista de membros é engraçada, se é possível ver alguma graça na tragédia: Renan Calheiros renunciou à presidência do Senado após denúncias, Romero Jucá saiu da Previdência por não explicar o inexplicável, Valdir Raupp responde a processo na Justiça, Gim Argelo é investigado em inquérito que está no Supremo, e vai por aí afora.

A legitimidade que eles têm para analisar, julgar e eventualmente condenar algum colega é a mesma que a diretora-geral da Polícia Rodoviária Federal, Maria Alice Nascimento Souza, tem para multar e prender quem quer que seja por faltas no trânsito. Com 27 pontos na carteira, ela se fingiu de desentendida. Só devolveu a habilitação depois de tudo parar na TV e vai ter de fazer cursinho de reciclagem.

É assim que o Conselho de Ética segue a sina das velhas e saudosas CPIs. Ele e elas vão, e as raposas ficam. Evidentemente, tomando conta do galinheiro.

elianec@uol.com.br

KENNETH MAXWELL

"The Busby Babes"

Em 6 de fevereiro de 1958, o voo da British European Airways que transportava o time do Manchester United para a disputa das semifinais da Copa Europeia de Futebol contra o Estrela Vermelha de Belgrado caiu em sua terceira tentativa de decolagem, depois de um pouso para reabastecimento em Munique.

A queda teve 28 vítimas fatais, entre as quais oito jogadores e três dirigentes do Manchester United. Matt Busby, o lendário técnico da equipe, sofreu sérios ferimentos. Ele só voltaria a Manchester de trem e via balsa, 71 dias depois.

Matt Busby assumiu o comando do Manchester United em 1945, depois de servir na Segunda Guerra. Recrutou Jimmy Murphy como seu assistente técnico depois de ouvi-lo fazer uma preleção a um time de futebol formado por soldados ingleses na Itália.

Na década de 50, Busby e Murphy montaram um time de adolescentes, conhecidos afetuosamente como "Busby Babes". Em 1956-57, o Manchester United chegou à semifinal da Copa Europeia, e foi derrotado pelo Real Madrid.

Após o desastre em Munique, Jimmy Murphy, que não havia acompanhado a equipe porque estava dirigindo a seleção do País de Gales em uma partida contra Israel pela classificação à Copa do Mundo, em Cardiff,
convenceu a diretoria do Manchester United a não suspender temporariamente as atividades do clube.

Ele escalou uma equipe improvisada com dois sobreviventes da queda, sete reservas e dois jogadores contratados às pressas e, em 19 de fevereiro, derrotou o Sheffield United por três a zero em uma partida pela quinta rodada da FA Cup (Copa da Inglaterra).

Em 3 de maio, 85 dias depois do desastre em Munique, o Manchester United superou todas as adversidades e chegou à final da FA Cup, em Wembley, perdendo por dois a zero para o Bolton Wanderers.

Bobby Charlton, um dos "Busby Babes" e sobrevivente da queda em Munique, descreveu Jimmy Murphy como "o maior professor de futebol que conheci". O Brasil, então campeão mundial, tentou, sem sucesso, contratá-lo.

Nesta semana, a BBC contou a história daquele período heroico num filme evocativo, intitulado "United", recordando uma época em que os garotos locais de classe operária se davam bem no Old Trafford.
Hoje, o Manchester United é controlado pelo empresário americano Malcom Glaser. O futebol está a anos-luz de distância dos dias difíceis da década de 50 e se tornou um grande negócio internacional.

A Argentina tem 1,8 mil jogadores na Europa; o Brasil tem 1,44 mil. No Manchester United, atual líder da Premier League, há jogadores de 11 nacionalidades. Sir Alex Ferguson, o escocês que treina o Manchester United, é o técnico de maior sucesso na história do futebol britânico.

KENNETH MAXWELL escreve às quintas-feiras nesta coluna.

CARLOS HEITOR CONY

Tasso da Silveira

RIO DE JANEIRO - Um nome que apareceu na mídia de forma inesperada e dramática. Contudo não li uma única linha na imprensa escrita, nem ouvi, no rádio ou na TV, o mínimo comentário sobre Tasso da Silveira (1895-1968), cujo nome inocente e ilustre foi dado a uma escola em Realengo.

Trata-se de um brilhante intelectual da primeira metade do século passado, sobretudo um professor estimado pelos alunos, além de poeta e ensaísta que marcou uma corrente de origem simbolista, da qual fizeram parte poetas como Cecília Meireles e Murilo Mendes.

O grupo de Tasso da Silveira foi o contraponto literário e espiritual do nativismo dos Andrades, Mário e Oswald.

Ele praticou, segundo Péricles Eugênio da Silva Ramos, "uma poesia simples, clara, de cunho moral, cheia de espiritualidade e leveza; a nitidez e a religiosidade de seus versos atingem o auge em "O Canto Absoluto", de 1940".

Por ironia do destino, o nome de um homem delicado, marcado pelas coisas do espírito, foi dado a uma escola que serviu de cenário a uma das maiores tragédias da vida nacional, o massacre de 12 crianças em 7 de abril. Ouço comentários de gente ligada ao magistério e às letras sobre a conveniência de se mudar o nome da escola, a fim de que o poeta e professor de tantas gerações não fique associado ao episódio de Realengo.

Aliás, é um problema que caberá às autoridades municipais decidir: se devem manter como escola o prédio manchado por sangue ou se dão ao edifício outro destino que não lembre a chacina de tantas crianças.

O nome de Tasso da Silveira continuará merecendo memória em outro estabelecimento de ensino ou em fundação oficial destinada à educação da juventude, para resgatar a herança que nos deixou um homem que viveu em função do bem e do belo.


28 de abril de 2011 | N° 16684
ARTIGOS - Nilson Carlos da Rosa*


Educação: tarefa de todos

A educação é um dos elementos fundamentais à formação e à constituição do sujeito em meio ao mundo em que ele vive. Não menos importante é saber o que se entende por educação, e educação de qualidade, no contexto atual da sociedade. Além disso, um entendimento mínimo de sociedade e aí compreendermos os sujeitos intrínsecos a ela.

A educação se dá num processo contínuo de aprimoramento do conhecimento humano, cuja finalidade é a formação da personalidade na sua integralidade de pessoa.

Um processo de construção individual e coletivo ao mesmo tempo, e para o qual nós temos de obrigatoriamente, diretamente ou não, estar empenhados em fazê-la sempre melhor. A educação como uma política de Estado, que envolva concomitantemente a este processo a família, a escola, e a Igreja.

Atualmente, a União gasta 5% do seu PIB em educação, enquanto países do Primeiro Mundo investem o dobro, a exemplo de Japão e Estados Unidos. Somos parte de uma nação que tem uma dívida social imensa e que precisa resgatar com investimentos grandiosos em educação, sejam eles a curto, médio e longo prazos.

É inegável a atenção dada a este setor nos últimos anos, mas não o suficiente para sanar a erosão histórica do ensino em nosso país, uma vez que se está fazendo ainda os reparos de danos longínquos da nossa história tupiniquim.

O avanço e a qualidade do ensino ainda estão por vir, porque não acontecem de forma avulsa. Tem-se de contemplar concomitantemente a isso, e do que estamos longe, questões referentes à área da saúde, do meio ambiente, da logística, de habitação, do trabalho digno, enfim, o atendimento de todos os aspectos básicos à vida de uma pessoa.

Pois é inadmissível ouvir, na realidade atual, alguém se dizer feliz na ignorância, na inacessibilidade dos seus direitos e do cumprimento dos seus deveres por ater-se tão somente à vontade de poucos, aos quais é dado por elas mesmas o poder de decidir.

Fernando Haddad, atual ministro da Educação, frisou que “educação de qualidade é um empreendimento social e depende da vontade de todo o conjunto da sociedade”. Ademais, educação de qualidade faz-se com o desenvolvimento da autonomia e do reconhecimento mútuo dos indivíduos.

Autonomia no sentido de determinação social (todos são capazes), e reconhecimento como fenômeno natural de relações efetivas, baseado em princípios éticos e morais, provindos da interioridade dos sujeitos, levando-os a uma postura social digna de prestígio e autenticidade.

Com isso, acredita-se infundir o espírito de uma política educacional apta de fazer frente às rápidas transformações sociais hoje vivenciadas, porque capaz de fazer dos novos sujeitos, através das suas ações, cúmplices deste processo. A educação é o abre-te sésamo da atual sociedade.
*Educador


28 de abril de 2011 | N° 16684
LETICIA WIERZCHOWSKI


Do desrespeito no trânsito

Volto para casa depois de devolver alguns filmes na locadora e, caminhando pela calçada, observo com pesar a moradora do prédio ao lado do meu, que entra na rua com seu carro pela contramão. Faço as contas: ela economizou um precioso minuto do seu dia ao ignorar as leis de trânsito, deixando de dar a volta na quadra de maneira a circular corretamente pela própria rua onde vive.

Se essa vizinha percebeu meu olhar furioso, fez pouco caso. Mas, afinal, o que é um olhar para alguém que ignora (provavelmente todo santo dia) uma bela placa vermelha sinalizando a mão única? Essa mesma vizinha, suponho, indigna-se ao ver os noticiários de TV, e reclama quando, numa faixa de pedestres, os carros não param para lhe dar a devida passagem. É impressionante como nossos julgamentos geralmente são parciais.

Como essa minha vizinha, existem outros tantos moradores daqui que andam com seus carros pela contramão numa boa, apenas porque é mais fácil – como se a lei do menor esforço fosse o alicerce fundamental da sociedade civilizada.

Muita gente reclama dos políticos corruptos, reclama do serviço público, reclama da pressa alheia, da grosseria alheia, do egoísmo alheio. E segue por aí, pingando a sua gota de desrespeito no balde do trânsito já tão difícil da nossa cidade.

E hoje leio com pesar a história do religioso que morreu atropelado em plena faixa de pedestres em Santa Maria. Não é a primeira, nem a última história. Dia desses, comoveu-me o depoimento (publicado aqui na Zero Hora) da mãe de um menino de 14 anos, que morreu atropelado por um caminhão quando cruzava de bicicleta uma faixa de segurança numa avenida de Porto Alegre. Histórias, histórias, todas tristes...

Histórias que se vão construindo a cada vez que um motorista avança sobre um pedestre, desrespeita a sinalização ou dirige por aí embriagado.

Toda história começa em algum lugar, silenciosa e discretamente, até que se faça a conjunção ideal entre hábito e circunstância, e o triste epílogo nós leremos ao abrir o jornal pela manhã. Acidentes acontecem – principalmente quando o desrespeito vira um hábito.


28 de abril de 2011 | N° 16684
PAULO SANT’ANA


Droga de esperança!

Que século! Noto que as abelhas pousam em copos de refrigerante diet.

Que século! Saíram os resultados da pesquisa Top of Mind da Revista Amanhã, 2011.

Estou ali figurando, pelo 20º ano consecutivo, como o colunista de jornal mais lembrado.

Os pontos que obtive nessa conceituada pesquisa popular jamais foram alcançados pelas centenas de premiados em todos os itens do certame, tenho 41,8 pontos contra 6 pontos do segundo colocado.

Não sei como pode esta coluna ser tão arrasadora.

Não entendo também como pode meu corpo estar tão combalido pelas doenças e meu cérebro e equipamentos sensitivos permanecerem intactos.

Faça frio, faça chuva, caiam as tempestades, mas há 40 anos os gaúchos leem todos os dias a minha coluna em Zero Hora. É mais que um hábito, é um vício, como o chimarrão ou a Coca-Cola Zero.

Como puderam essas milhares de colunas resistir a tanto? Como pude? Sem deixar me vergar nem pelas doenças.

Diariamente. Como pude?

Escrevi ou dei a entender há poucos dias que o Grêmio seria inevitavelmente desclassificado da Libertadores.

Baseei meu raciocínio no fato de que os dirigentes gremistas fizeram um time, em 2011, destinado a perder.

Tentei assim tirar da cabeça dos torcedores gremistas que eles nutram esperança com esse time que o Renato treina.

Por sinal, o mal do Grêmio é a esperança. A esperança arruína, ela entorpece os espíritos, que são enganados por ela.

Um time só avança quando os torcedores têm certeza e não esperança.

Não sem motivo quase sempre quem tem esperança é porque está desesperado.

Eu notava nas ruas que os torcedores do Grêmio tinham esperança de ganhar a Libertadores.

A esperança é uma droga que ilude, engana e mata.

No dia em que eu escrever que tenho esperança em determinado time, tenham a certeza de que não acredito nada nesse time.

E nas ruas havia a esperança, adubada pela incrível cegueira da crônica esportiva, que em nenhum momento advertiu os leitores, telespectadores e ouvintes de que o time do Grêmio é muito ruim e desabou quando Jonas foi vendido e André Lima lesionou-se, sem nenhuma ação da diretoria gremista para reforçar a equipe.

Nada fez a direção, nada. E já começou a colher os frutos de sua inação, anteontem.

Não existe esporte mais lógico que o futebol. Time bom tem chance de ser campeão.

Time ruim não pode ser campeão. Esse time do Grêmio enjambrado sem reforços e sem alternativas para o treinador é muito ruim.

Vai, portanto, ficar muito longe do título de campeão da Libertadores. Como eu já tinha escrito e como se confirmou.

Dali onde não se espera nada, dali é que nunca vem nada mesmo.


28 de abril de 2011 | N° 16684
L. F. VERISSIMO


Buuu

Diálogo urbano, no meio de um engarrafamento. Carro a carro.

– É nisso que deu, oito anos de governo Lula. Esse caos. Todo mundo com carro, e todos os carros na rua ao mesmo tempo. Não tem mais hora de pique, agora é pique o dia inteiro. Foram criar a tal nova classe média e o resultado está aí: ninguém consegue mais se mexer. E não é só o trânsito. As lojas estão cheias. Há filas para comprar em toda parte. E vá tentar viajar de avião.

Até para o Exterior – tudo lotado. Um inferno. Será que não previram isto? Será que ninguém se deu conta dos efeitos que uma distribuição de renda irresponsável teria sobre a população e a economia? Que botar dinheiro na mão das pessoas só criaria essa confusão? Razão tinha quem dizia que um governo do PT seria um desastre, que era melhor emigrar. Quem pode viver em meio a uma euforia assim?

E o pior: a nova classe média não sabe consumir. Não está acostumada a comprar certas coisas. Já vi gente apertando secador de cabelo e lepitópi como se fosse manga na feira. É constrangedor. E as ruas estão cheias de motoristas novatos com seu primeiro carro, com acesso ao seu primeiro acelerador e ao seu primeiro delírio de velocidade.

O perigo só não é maior porque o trânsito não anda. É por isso que eu sou contra o Lula, contra o que ele e o PT fizeram com este país. Viver no Brasil ficou insuportável.

– A nova classe média nos descaracterizou?

– Exatamente. Nós não éramos assim. Nós nunca fomos assim. Lula acabou com o que tínhamos de mais nosso, que era a pirâmide social. Uma coisa antiga, sólida, estruturada...

– Buuu para o Lula, então?

– Buuu para o Lula!

–E buuu para o Fernando Henrique?

– Buuu para o... Como, “buuu para o Fernando Henrique”?!

– Não é o que estão dizendo? Que tudo que está aí começou com o Fernando Henrique? Que só o que o Lula fez foi continuar o que já tinha sido começado? Que o governo Lula foi irrelevante?

– Sim. Não. Quer dizer...

– Se você concorda que o governo Lula foi apenas o governo Fernando Henrique de barba, está dizendo que o verdadeiro culpado do caos é o Fernando Henrique.

– Claro que não. Se o responsável fosse o Fernando Henrique, eu não chamaria de caos, nem seria contra.

quarta-feira, 27 de abril de 2011



27 de abril de 2011 | N° 16683
MARTHA MEDEIROS


Outros estrangeirismos

Gosto muito do que voçê escreve. Se não for encômodo, poderia ler o meu blog?

Estou anciosa para ler seu novo livro.

Essas três primeiras frases são exemplos de manifestações carinhosas que recebo diariamente e que muito me comovem, mas, se você reparar bem, vai ver que elas trazem alguns “estrangeirismos” à língua portuguesa, com os quais, aliás, o governo não se importa tanto.

Você escrito com cedilha. Encômodo em vez de incômodo. Anciosa em vez de ansiosa. Equívocos campeões de audiência. Existe também na linguagem escrita uma farta distribuição de palavras como previlégio, viajem, recompença, análize, sem contar os clássicos mendingo, menas, imbigo.

Quando se trata da palavra falada, é comum ouvir “trusse” em vez de trouxe, “eu soo” em vez de “eu suo”, sem falar no descaso absoluto com os plurais: vou com quatro amigo, ela me deve cinco real, almocei dois pastel.

Serão todos analfabetos? De forma alguma. São profissionais liberais, estudantes de faculdade e, olha, alguns se apresentam até como professores. Erram porque todo mundo erra, assim como eu também cometo meus erros. Não esses, nem tantos, mas cometo. Recentemente passei pelo vexame de escrever “doentis” em vez de “doentios”. O português é uma língua que convida à derrapagem.

Só há uma maneira de barrar o uso disseminado desses estrangeirismos no nosso idioma: incentivando cada vez mais o hábito da leitura, investindo maciçamente nas escolas e inaugurando uma biblioteca pública em cada esquina.

Se não for assim, os pais continuarão falando errado em casa e darão maus exemplos aos seus filhos, que por sua vez passarão adiante atrocidades como “para mim fazer” ou “vou estar fechando a loja”, e o português continuará sendo infestado de expressões que, essas sim, comprometem a integridade do nosso idioma.

Eu sou contra qualquer patrulha, mas se querem instaurar uma, que seja pela preservação do bom português, em vez de perderem tempo com uma caça às bruxas improdutiva. A absorção de palavras estrangeiras é algo natural em qualquer cultura, não há motivo para organizar uma resistência.

Claro que há certos exageros, principalmente no jargão empresarial, mas isso é questão de gosto: na minha opinião, de mau gosto. Me parece mais elegante apresentar um orçamento do que um budget, fazer uma reunião do que fazer um meeting e apresentar um relatório em vez de um paper, mas há quem se sinta um profissional mais competente falando assim. Afetação, só isso. De forma alguma coloca em risco nossa língua mãe.

Utilizar palavras em inglês, vez que outra, é apenas uma rendição ao que se consagrou como universal. Não mata ninguém. E não deixa de ser didático, afinal, o turismo tem aumentado no mundo e é bom que se saibam algumas palavras-chaves.

De minha parte, acho preferível fazer um happy hour do que ter uma hora felis com os amigos, fazer um check in no aeroporto do que uma xecagem, executar downloads do que baichar músicas. O uso eventual do inglês (ou do francês, do italiano, do latim) não compromete em nada o nosso idioma. O português mal falado e mal escrito é que nos faz passar vergonha.


27 de abril de 2011 | N° 16683
DAVID COIMBRA


O brigão, o pacífico, o grandão, o bom em tudo

O Renato e o Ronaldo eram gêmeos. Idênticos, só que completamente diferentes. O Renato era a própria brandura, quieto, quase tímido. O Ronaldo, expansivo, confiante, brabo que nem um cachorro. Gostava de brigar, o Ronaldo, e quando brigava se transformava em um profissional dos punhos.

Encarava o adversário com a frieza assassina do Bruce Lee e o castigava com a precisão cruel do Muhammad Ali. Não desferia chutes, não aplicava gravatas, nem cabeçadas, só murros secos e certeiros, TUC!, no nariz, mais um direto, TC!, no olho, e outro ainda, curto e fatal, T!, no queixo. Vi o Ronaldo transformar caras bonitas em xis-bacon. O Renato olhava aquilo, suspirava e balançava a cabeça:

– Esse meu irmão...

O Ronaldo era gremista; o Renato, colorado.

O Raimundão tinha dois metros de altura e usava bigode. Jogava no gol. Chegava ao Alim Pedro todo vestido de preto, com uma capanga preta debaixo do braço. Todo mundo sabia que havia um trezoitão adormecido dentro daquela capanga. O Raimundão entrava na grande área em silêncio, caminhava para o fundo do gol, a capanga presa no sovaco, e a acomodava no fundo da rede. Todo mundo ficava olhando para aquela capanga. O Raimundão era colorado.

O Diana a gente chamava de Diana por causa da cachorra dele, que se chamava Diana. Uma vez o Raimundão se irritou com o Diana por algum motivo e saiu correndo atrás dele. Nossa, se o Raimundão pegasse o Diana ia ser uma covardia, o Diana ia virar patê. Mas o Diana era ligeiro, voou pela porta de entrada do edifício dele, subiu as escadarias de três em três degraus e se homiziou na segurança do lar.

E não é que o Raimundão, no afã de alcançar o Diana, deu um pataço na porta do apartamento e a arrombou? Foi o maior barulhão, a porta caiu, a mãe do Diana se sentiu mal, um escândalo. Daquela vez, o Diana até que se deu bem, o Raimundão foi embora sem tocá-lo. Doutra, não. Foi quando ele apostou que o Grêmio ia ser campeão.

– Se o Grêmio não for campeão, eu pasto! – prometeu o Diana.

Estávamos nos anos 70, o Inter com aquele supertime. O Diana comeu a grama da ponta-esquerda do Alim Pedro. A ponta-esquerda de quem chuta em direção à Plínio. O Diana, claro, era gremista.

O Edu protegia o Diana. O Edu sabia brigar, uma vez deu num neguinho da Frei Caneca, os neguinhos da Frei Caneca eram nossos inimigos e aquele neguinho, um rengo, aquele era o mais perigoso deles. Pois o Edu deu um pau naquele neguinho, mas deu-lhe que deu-lhe. Foi lindo. O Edu era bom em tudo. Jogava na meia, batia de direita e a bola zunia virada num paralelepípedo quando ele pegava no peito do pé.

O saque dele, no pingue-pongue, saía de revesgueio, ninguém rebatia. E o inhaque do Edu quebrava as jogas de todo mundo, uma potência. O Edu era gremista.

O Zé Fernandes e o Barril eram dois irmãos, muito parecidos, mas não gêmeos como o Renato e o Ronaldo. O Zé era o dono da bola, a única bola da zona, de couro, grandona, vermelha, costurada à mão, oficial.

A mãe do Zé não deixava que ele saísse de casa, ele tinha que ficar estudando. Deu certo, hoje o Zé é arquiteto, mas na época era um saco, era difícil de conseguir a bola dele emprestada.

Quando podiam jogar, o Zé e o Barril faziam a mesma coisa: ficavam lá em cima, na banheira, esperandinho. Sempre faziam gol. O pai deles às vezes ia olhar o jogo. O pessoal dizia que o Zé e o Barril apanhavam, se não marcassem gol. Acho que não era verdade, mas, se fosse, eles não apanhavam nunca. Eles sempre faziam gol. O Zé e o Barril eram colorados.

O Marcelo Gordo tinha um troço que era de espantar. Ele estava lá, jogando bola com a gente, a peladinha animada e, de repente, o Marcelo Gordo erguia as orelhas, espetava o indicador no ar, olhava para cima e avisava:

– Meu pai está me chamando.

E saía correndo. Nós ficávamos irritados, ninguém nunca ouvia nada, pai chamando coisa nenhuma.

– Que teu pai tá te chamando, Marcelo Gordo!

O Marcelo Gordo jurava: – Ele tá assobiando!

E saía correndo, desfalcando um time. Irritante. Um dia, resolvemos apurar aquilo. No meio do joguinho, o Marcelo Gordo:

– Meu pai está me chamando!

E saiu correndo, como sempre. Só que nós saímos atrás dele. Seguimos o Marcelo Gordo pelas ruazinhas do IAPI e, quando chegamos à esquina da casa dele, o que vimos? O pai do Marcelo Gordo parado, de pé, as mãos fincadas à cintura, o queixo levantado, a boca num biquinho.

Não parecia sair nada dos lábios do pai do Marcelo Gordo, só vento, mas o Marcelo Gordo ouvia um assobio, que nem um cachorro ouvindo apito de dono. Alguém um dia vai ter que me explicar aquilo.

E agora, pensando no Marcelo Gordo, me ocorre que não sei se o Marcelo Gordo era gremista ou colorado. Como pode??? Na terra do Gre-Nal, a primeira coisa que tem que se saber de alguém é se é gremista ou colorado. Que mistério, aquele Marcelo Gordo. Que absurdo.


27 de abril de 2011 | N° 16683
PAULO SANT’ANA


Uma grande injustiça

Tenho assistido pelos meios de comunicação a uma das maiores arbitrariedades já registradas neste Brasil.

Os motoristas que se negam a se submeter ao teste de bafômetro, em razão disso, logo são multados em mais de R$ 900 e veem suspenso o seu direito de dirigir.

Uma infâmia administrativa que ameaça tornar-se jurídica.

Se a Constituição garante a todos os cidadãos o direito de não produzir prova contra si, como apenar-se quem se recusa a assoprar o bafômetro com multa severa e suspensão da direção?

A autoridade policial que vá comprovar que o motorista estava alcoolizado da forma que puder, mas que não se vingue do motorista que rejeita o bafômetro, atropelando-o com a multa financeira draconiana e o impedimento de dirigir.

Punir quem exerce um direito constitucional é uma das maiores besteiras e violências oficiais que estão em curso.

O que as autoridades de trânsito estão decretando é que tem de ser punido quem é amparado pela norma constitucional.

Um típico comportamento de vindita, que eu penso tenha de depressa ser varrido das nossas ruas pelos tribunais.

De nada adianta, para tentar fulminar o meu entender, que o Código de Trânsito autorize o agente a multar e a suspender o direito de dirigir do motorista que se negar ao bafômetro. É esse dispositivo, exatamente, que eu declaro ser violentamente inconstitucional.

Porque viola diretamente o direito constitucional de não ajudar ou proporcionar por nenhuma forma a que se consubstancie prova contra si.

Mais lamentável ainda tem sido essa flagrante arbitrariedade quando se sabe que a lei do trânsito dá às autoridades e a seus agentes o direito de impingir o bafômetro mesmo que o agente passivo não tenha cometido qualquer infração de trânsito: basta que ele se recuse a assoprar a geringonça delatora quando for apanhado numa blitz, numa simples batida policial.

Ou seja, não há nenhuma transgressão ao trânsito por parte do motorista, mas a autoridade é delegada por lei a procurar algum ilícito na conduta do ator, impondo-lhe o bafômetro humilhante e amedrontador, como tentaram fazer com o senador Aécio Neves.

Ou seja, “não há nada contra o senhor, por enquanto, porque vamos lhe aplicar o bafômetro e temos esperança de desmascará-lo”.

Resulta que, se o motorista se recusar ao bafômetro, será punido sem nenhuma transgressão praticada, mesmo que não esteja embriagado.

Uma ignomínia.

Tenho o dever de me acautelar contra as pessoas pouco inteligentes que porventura leiam esta coluna e possam estar interpretando que estou a favor dos desordeiros no trânsito, no caso os alcoolistas.

Nada disso, sou contra os bêbados e contra todos os infratores reincidentes no trânsito.

O que estou a discutir é outra coisa, é a inconstitucionalidade do bafômetro recusado resultar em punição ao motorista.

Isso é uma injustiça e este espaço tem o dever não só de proclamá-la como a de tentar ajudar para que ela seja exorcizada da nossa atualidade.


27 de abril de 2011 | N° 16683
DIANA CORSO


Fluxo da impessoalidade

Motoristas sobrevoam uma paisagem, de preferência sem dispersão, atentos a rotas, contextos, coordenadas. Lombas e acidentes do terreno só exigem uma rápida mudança de marcha.

Nada precisam saber de cheiros, gosmas na calçada, vegetação e sombras, do zoológico de animais domésticos, dos adolescentes coreografando sua música solitária, de velhos ocupados e crianças contando algo a um adulto que se reclina, de pessoas belas, esdrúxulas, vivazes, sorumbáticas.

Com cada rosto que se cruza há uma negociação de olhares, uma história imaginada, medo ou confiança. Só os loucos desrespeitam a separação entre carros e pedestres: atravessam a rua costurando entre os carros, conduzindo sua moto de delírio.

Entre os veículos também há breves encontros em que os motoristas se enxergam, no tempo impaciente de uma sinaleira, na redução contrariada de um obstáculo. Mas a identidade não é o corpo, é o carro: é o gordo do Gol vermelho, a loira do Audi prata.

O carro é avatar: através dele expressamos, mas também ocultamos nossa personalidade. Isolados, minimizamos o encontro, xingamos tudo o que obstrui o fluxo. Parar nos deixa acuados, o engarrafamento nos desnuda.

No conto de Julio Cortázar A Autopista do Sul, a história se passa numa estrada francesa, num engarrafamento sem razões reveladas. São vários dias de imobilidade, ao longo dos quais os passageiros dos carros vão se transformando em membros de uma pequena sociedade nascente.

A identidade das personagens inclui as características do veículo que dirigem. Organizam-se em grupos, lideranças se consolidam, redes de solidariedade se firmam, intrigas ameaçam a união. Nesse tempo de movimento cessado a vida segue: há doença, um suicídio, até uma história de amor brota do árido asfalto.

O autismo (perdão pela piada involuntária) do trânsito foi sendo suplantado pela empatia do grupo. Subitamente o engarrafamento dissolve-se tão inexplicavelmente quanto se perpetuara. Retomado o movimento da autopista, os carros se distanciam velozmente e sentimos pena dos vínculos que se desmancham. Instala-se novamente o fluxo da impessoalidade.

Deslocar-se não é um trecho fora da vida. Existimos também no tempo em que ainda não chegamos, enquanto “estamos indo” para algum lugar. Por que não incorporar os trajetos na nossa consciência? Andar, pedalar, usar transportes coletivos (que não fossem uma tortura), são formas de locomover-se vendo sutilezas, suportando a existência de outros corpos. Mesmo que todos pareçam tão nus, sem seus cascos, tão frágeis, sem escudo.

terça-feira, 26 de abril de 2011



26 de abril de 2011 | N° 16682
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Acidente de percurso

Na calma destas manhãs de domingo, costumo revisitar minha infância. Cachoeira era então uma cidade atrevida e próspera. Perguntei uma vez a meu pai se Cachoeira era maior que Caxias, e ele respondeu que sim. “Cachoeira”, disse, “é a maior produtora de arroz do Brasil e a quarta praça financeira do Estado. Isso quer dizer que só outras três cidades gaúchas têm mais movimentação de dinheiro que a nossa, aí incluindo Porto Alegre.”

E se perguntava se Cachoeira tinha aeroporto, meu pai respondia imediatamente que sim. São três voos semanais, da Varig e da Savag, ligando-nos com a Capital. “E temos cinemas?” “Temos dois: O Cine-Teatro Coliseu e o Cine Ópera Astral.” E porto, temos? “Claro que sim. Basta descer a ladeira da Rua Morón e tu encontrarás um amplo ancoradouro povoado de embarcações.”

E em indústrias, como estamos? “Vai à Estação Ferroviária – aliás, ligada diariamente com Porto Alegre e Santa Maria – e verás uma fileira de imensos engenhos, capazes de abastecer o Brasil.”

Eu ouvia essas e outras coisas de meu pai e ficava orgulhoso de minha cidade. Havia mais: tinha um hospital – onde aliás nasci – comparável aos mais modernos das três Américas. Não nos faltavam lideranças: em um governo eram nossas as secretarias da Educação e Cultura e a da Agricultura. O mais belo e moderno clube do Rio Grande do Sul – o Comercial – ficava bem no centro do centro da Rua Sete, com seus mármores e cristais.

E estávamos bem servidos de igrejas? Meu pai sorria: “O grande historiador Athos Damasceno Ferreira descreveu a Matriz como mais ampla que a própria catedral de Porto Alegre”. Tinha, antes da desastrosa reforma que a deformou e desfigurou, um altar-mor, vários altares laterais e santos ancestrais, talhados nas Missões, cuja idade se media por séculos.

E ornavam a cidade lindas casas? “Lindíssimas”, comentava meu pai. “Um bairro chamado Rio Branco reunia esplêndidas mansões, que não fariam mau papel num recanto da Europa”.

Mas então o que houve com Cachoeira?

“Um acidente de percurso”, diria hoje meu pai. “O tempo passou e ela esqueceu de crescer.”


26 de abril de 2011 | N° 16682
LUÍS AUGUSTO FISCHER


Não se dá o respeito

Expressões populares, como a do título, costumam ter mais de uma encarnação. Agora, por exemplo, circula com liberdade a frase “Tô pouco me lixando”; a confiar na minha memória, essa formação resulta da fusão de duas anteriores, “Tô pouco me ligando” e “Tô me lixando”, ambas significando aproximadamente a mesma coisa, “Não tô nem aí”, mas cada uma com um centro: “tô pouco me ligando” declara desligamento de dentro pra fora, ao passo que “tô me lixando” declara pouco-caso pelo lado de fora, o lado lixável.

Para mim, a frase “Tô pouco me lixando” não forma o sentido que gostaria de formar, ou é irremediavelmente paradoxal? Mas eu posso ser o único a reparar nisso e portanto a observação resultar inútil.

Por outro lado, o atento leitor já deve ter ouvido que fulano “não se dá ao respeito”, em lugar de “não se dá o respeito”. Por razões de regência e clareza, prefiro esta última: ao fazer grossa bobagem, o fulano em causa não dá a si mesmo o respeito que quer receber dos outros. Assim ocorreu com o presidente da Academia Brasileira de Letras, neste mês que está por findar.

O senhor em causa se chama Marcos Vilaça e protagonizou, não sei se por conta e risco próprios ou se com apoio de mais, hummm, acadêmicos, uma cena que seria patética se a Academia ocupasse por mérito o lugar que ocupa na vida brasileira por decreto, por anacronismo e por leniência nossa.

É que, conforme noticiou a Folha de S. Paulo (12 de abril, caderno Esporte, página D7), por sua mão a Academia agraciou dois homens com a sua mais alta comenda, a Medalha Machado de Assis; os dois homens são Ronaldinho, dito Gaúcho, e Vanderlei Luxemburgo.

(No ano passado, Joel Santana, outro técnico de futebol, ganhou a mesma medalha.) Perguntado sobre seu livro predileto, o atleta declarou, firme e forte: “Não tenho”. Acrescentou que aproveitaria a visita para pedir dicas de livros para aqueles ilustres ali.

Sei que a sessão era uma homenagem a José Lins do Rego, escritor e flamenguista, o que justifica adequadamente a Medalha Joaquim Nabuco dada ao clube Flamengo (recebeu-a a presidente, Patrícia Amorim); aqui estamos no terreno das honrarias formais cabíveis.

Mas e as outras medalhas? Nada tenho contra o elogio público a atletas de futebol ou de outros esportes; o que me parece uma bobagem irrecuperável é dar a eles a Medalha Machado de Assis. A habilidade de Ronaldinho com os pés (e a de seu irmão empresário com a lábia e os números) o tirou do convívio com a literatura, que ele agora desdenha vivamente, com o aplauso quase abjeto dos acadêmicos que lhe prestaram a homenagem.


26 de abril de 2011 | N° 16682
PAULO SANT’ANA


Ondas de coletivos

O mais belo de todos os coletivos é cáfila, que quer dizer uma reunião de camelos.

O mais feio de todos os coletivos é choldra, que é uma reunião de bandidos, malfeitores.

Eu pensei que o coletivo de lobos fosse matilha, mas fui saber que é alcateia.

Mas como é que eu ia saber que o coletivo de jornais e revistas é hemeroteca?

Já para gafanhotos, existe um coletivo de bons gafanhotos, que é nuvem, mas existe o de maus gafanhotos, que é praga.

E, se as aves estão pousadas no chão ou em árvores, o seu coletivo é bando, mas, se estão voando, é revoada.

Já o coletivo de bruxas é curiosíssimo: conciliábulo. Eu pensei que conciliábulo fosse qualquer reunião de qualquer tipo de pessoas, com assunto interessante, de preferência secreto, para discutir.

E por que será que ninhada tanto é coletivo de camundongos quanto de pintos?

E o coletivo de gente, que pode ser tanto multidão quanto mole?

Eu sempre ouvi a expressão “uma mole humana”, que só agora vejo que é errada, pois se é mole só pode ser referente à criatura humana, não existe a expressão “mole animal”.

É mole?

Se é, é humana.

No javali, por exemplo, nada, absolutamente nada é mole.

Tanto que o intercurso (tempo de duração do ato sexual) no javali é de 16 horas. Sem intervalo para um cigarro ou Coca-Cola.

Existem alguns coletivos que são pura bobagem: como, por exemplo, o coletivo “moita” é relativo a bambus.

Ora, “moita” é todo conglomerado de galhos de árvores ou arbustos no campo ou na selva.

Não há que servir moita só para os bambus.

Eu conhecia como coletivo de bambus o bambuzal.

Já baixela não serve só para talheres ou louças, é empregado com quaisquer objetos com que se serve ou enfeita a mesa.

Já a palavra “bandos”, noto que pode ser aplicada para jornalistas, parlamentares, aves, ladrões, motoqueiros, policiais, isto é, “bando” é coletivo de quaisquer seres vivos.

Cardume é coletivo de peixe, vara é de porcos, prole é de filhos, batelada é de arroz.

O mais curioso coletivo que conheço é o de bugios: capela.

Uma capela de bugios. Vivendo e aprendendo...

E, finalmente, “coletivo” é coletivo de passageiros.


26 de abril de 2011 | N° 16682
DIANA CORSO | DIANA CORSO (Interina)


Bullying: usos e abusos de um termo

De tanto em tanto, sofremos epidemias de explicações, e já faz algum tempo que o bullying está nesse registro. Denunciar essa prática é válido para revelar um sadismo que nunca esteve ausente da relação entre as crianças, frente ao qual as instituições escolares sempre foram cegas. Porém, acabamos observando outro fenômeno: o de um termo que acaba deixando de interpretar fenômenos e começa a participar de sua gênese.

Semana passada, um jovem entrou numa escola em Porto Alegre gritando, agredindo e causando pânico na sala de aula. Ex-aluno, justificou-se dizendo que estava vingando o bullying sofrido pela irmã. O assassino perturbado do Realengo também teria sido vítima de tal prática. Hitler teria arcado com as consequências de sua baixa autoestima e o próprio nazismo seria uma reação do povo alemão à posição humilhante em que o resto do mundo o colocou após a I Guerra.

Um marido traído, motivo de chacota entre os conhecidos, pela mesma linha de argumentação, teria justificativa para matar os amantes e todos os fofoqueiros de plantão. A cadeia de ressentimentos pode não ter fim quando uma vitimização qualquer funciona como justificativa para um ato de violência. É a apoteose dos agressores que se sentem vítimas.

Minha entrada na escola deu-se juntamente com a aprendizagem da língua portuguesa, falar errado e ser estrangeira não foi fácil. Era a única criança judia da escola pública na qual fiquei até a adolescência. Na época, rezava-se todas as manhãs antes do início das atividades (nosso país sempre foi laico em termos), eu era convidada a retirar-me.

O objetivo de evitar constrangimentos, ao me impor outra religião, causava um pior: o exílio do pátio. Passei, portanto, por situações que poderiam ter sido caracterizadas como bullying, as quais sempre foram poucas porque me mimetizava, tinha terror de ser tachada de diferente, já que de fato era.

Um padecimento qualquer não é uma sentença de vida, é um elemento com o qual se faz o que se consegue. Na clínica, conheci jovens e crianças que faziam coisas desagradáveis ou ridículas para que isso atraísse a agressividade dos outros, geravam hostilidade e com isso realizavam uma fantasia inconsciente. O bullying é um fenômeno, mas sua causa compõe-se de infinitas variáveis.

Ser hostil com os outros, como é o caso dos algozes, provocar os maus-tratos sofridos, como por vezes é o caso das vítimas, ou mesmo ser incapaz de entrosar-se, são sintomas psíquicos, mensagens atravessadas. Perceber que a escola é a primeira experiência de socialização, onde podem nascer sofrimentos que perduram, é fundamental, mas que isso sirva para tornar a instituição mais sensível, não para aumentar o coro das vinganças justificadas.

segunda-feira, 25 de abril de 2011


José Paulo da Rosa*

25 de abril de 2011 | N° 16681
ARTIGOS


Coreia do Sul: educação e sagu

A Coreia do Sul obteve destaque mundial pelos bons resultados que seus alunos têm alcançado em provas internacionais de conhecimento. O desenvolvimento econômico do país decorre da qualidade de sua educação. Nosso governador programa viagem à Coreia para conhecer essa realidade. Estive em Seul em novembro de 2009. Como parte de uma pesquisa para um doutorado em Educação, visitei o Ministério da Educação da Coreia do Sul, além das quatro melhores escolas de Ensino Fundamental e Médio. Estava acompanhado de uma profissional daquele país, que fez o papel de intérprete português/coreano.

Essa intérprete esteve por um ano no Rio Grande do Sul, quando aprendeu a falar nosso idioma. Numa das refeições que tivemos, questionei qual a comida que ela mais gostou aqui do RS (imaginando que a resposta seria churrasco, ou feijão, ou carreteiro) e sua resposta foi: sagu! O bom e velho sagu de vinho.

A Coreia do Sul esteve sob o domínio do Japão de 1910 a 1945. Quando reassumiram o controle do país, os coreanos priorizaram a educação como fator de desenvolvimento. Todas as escolas são de turno integral. Os alunos ficam na escola cerca de nove horas por dia, em estruturas que permitem práticas esportivas, atividades artísticas, aulas de ciências e ações complementares à educação formal.

Os professores são valorizados, sendo que os melhores profissionais estão na educação básica, inclusive com incentivos e melhor remuneração para esse nível de ensino. As escolas públicas são geridas por um Conselho Escolar, composto por pais de alunos e pessoas da comunidade sem vínculo partidário.

Esse Conselho é responsável pela indicação do diretor e, pasmem, avalia o desempenho da escola, podendo substituir o diretor se for necessário. O grande sonho dos jovens da Coreia do Sul é serem campeões nacionais de matemática. O vencedor dessa competição é um herói nacional. A família está presente no dia a dia das instituições de ensino. Ou seja, existe uma cultura nacional que valoriza a educação.

Pesquisa Ibope encomendada pelo Grupo RBS apontou que a maior demanda dos gaúchos é educação. A receita do sagu é simples. Se você não sabe, pergunte para sua mãe, para sua tia, para sua avó, certamente elas saberão. O RS já foi exemplo de modelo educacional para o Brasil. Para voltar a esse status, quem sabe o governador negocia nossa expertise em sagu pelo excelente modelo educacional coreano.

*Diretor regional do Senac-RS


25 de abril de 2011 | N° 16681
LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL


Marilyn

Em 2012 decorrem 50 anos do suicídio [?] de Norma Jeane Mortensen, aliás, Marilyn Monroe. Sua vida foi um longo ensaio para a loucura e a morte. Desde que nasceu a morte e a loucura a perseguiram, a começar por uma lendária cena de tentativa de homicídio, em que sua avó, louca, a asfixiava com um travesseiro. Depois foi a vez de internar Gladys, sua mãe, também por insanidade.

Seu pai, desconhecido.

Deu-se a sequência de ups and downs: matriculada sob o número 3463 num orfanato de Los Angeles, saiu de lá para diversos lares de ocasião, encontrando segurança apenas com Ana Lower, que tentou de todas as formas compensar os anos de abandono de sua pupila. Então surge a vida, com o desabrochar de uma beleza morena e forte, bem mais natural do que a famosa loira química dos anos seguintes.

O trabalho numa fábrica de paraquedas não poderia durar muito: descoberta por um fotógrafo, começou sua corrida irresistível rumo às páginas dos jornais, às capas das revistas ilustradas, à solitária foto que acabou nas paredes das borracharias, à Fox, ao cinema. Logo fez fama de loira burra, entregando-se, complacente, a essa imagem de caricatura.

Dentro dela, porém, subsistia a caipira Norma Jeane, um ser perplexo ante o sucesso que, no íntimo considerava imerecido. Começava a época dos ensaios: ensaios de vários casamentos, cada qual mais ruinoso do ponto de vista humano; ensaios de suicídios, alguns falsos, alguns verdadeiros. Daí foi um passo para as drogas, para o álcool, para as pílulas de dormir, de acordar.

O coquetel entre a demência e a compulsão para a morte começava a fazer seus efeitos, e a forma de superar esse círculo de ferro foi a sedução erótica - mas de fachada: Tony Curtis disse que beijar Marilyn era o mesmo que beijar Hitler. Paradoxo: o símbolo sexual do século não encontrou jamais qualquer espécie de consolo sentimental.

Grandes vidas, grandes biografias: tudo isso está no livro Marilyn Monroe, de Anne Plantagenet, saído em tradução de Rejane Janowitzer, pela L&PM, que consegue, numa habilidade e refinamento bem franceses, recriar essa mulher que, antes de um ser humano concreto, era uma tentativa em pessoa - até a última, a morte final, em 1962.


25 de abril de 2011 | N° 16681
PAULO SANT’ANA


Inter arranca favorito

Eu fico imaginando como se sente agora o Celso Roth diante do insistente processo de adulação que a imprensa presta ao Falcão.

Tudo o que o Celso Roth fazia estava errado, tudo o que o Falcão faz está certo.

Para usar uma palavra que Falcão gosta, a compactação da imprensa a favor de Falcão é o destacado fenômeno jornalístico-futebolístico do momento.

Os maiores críticos de Celso Roth, todos os conhecem pela insistência com que discordavam metodicamente daquele treinador, estão agora virados em baba-ovos do Falcão.

Nesse ponto, a direção do Internacional acertou em contratar o Falcão, de uma penada fez a imprensa virar a favor do Internacional, tudo é elogio, tudo está bem. Até o fato de os jogadores colorados antes de ontem não festejarem os gols que marcam foi obscurecido.

Ontem, no rádio, ouvi um baba-ovo de Falcão, o mesmo que fez campanha para derrubar o Celso Roth, nas 10 intervenções que fez antes do jogo, derramar-se em loas ao Falcão: o treinador acerta quando não põe Oscar no time, acerta quando escala o Oscar, acerta quando joga com dois atacantes e fiquei imaginando que o baba-ovos elogiará o Falcão até quando ele tirar o Oscar e colocar o Zé Roberto no seu lugar, erguendo um time com três atacantes.

Está insuportável a baba-ovice da imprensa sobre o Falcão.

E, agora que o Falcão conseguiu ganhar do Juventude, em Caxias, com apenas 10 homens em campo em face da expulsão de Bolatti, colocando em campo o Tinga para ajudar no gol da vitória, vai haver na imprensa um festival de baba-ovos de Páscoa sobre o Falcão.

Está em regozijo a alma colorada, vai para os Gre-Nais com seu time de favorito, eis que o Grêmio teimou acintosamente em não reforçar sua equipe, mesmo com a saída de Jonas e a lesão radical de André Lima.

E agora, sem Victor no Gre-Nal, ainda mais facilitada fica a tarefa colorada. Para mal dos pecados, ainda por força da imprevisão dos dirigentes gremistas, Lúcio, o termômetro do time também, se lesionou e está fora do clássico.

O Renato Portaluppi tem de estar ganhando muito bem para não reclamar da escassez de recursos humanos a que a direção gremista o condenou, o Renato mal pode formar um time, mas silencia, o que facilita ainda mais a falta de visão da direção tricolor.

Vamos então para um Gre-Nal com o Beira-Rio lotado e o Grêmio lotado de grandes desfalques.

Favoritíssimo o Internacional. E, se ganhar este Gre-Nal, ainda mais favorito fica o Inter para os dois Gre-Nais da finalíssima.

Vai ter fila esta semana no baba-ovos do Falcão.


25 de abril de 2011 | N° 16681
L. F. VERISSIMO


Outro Jesus

“Eloi, Eloi, lama sabactani.” As palavras de Jesus na cruz – “Deus, Deus, por que me abandonaste? – estão em dois dos evangelhos, o de Mateus e o de Marcos. Os de Lucas e João não as registram. Não há muitas divergências entre os evangelhos, embora o quarto, de João, seja tradicionalmente considerado o mais literário, ou eloquente.

Os três primeiros, chamados “sinóticos” porque foram escritos mais ou menos ao mesmo tempo, incluem a passagem de Jesus em Getsêmani, quando ele pede a Deus que não exija seu martírio final e que passe dele o cálice amargo do sacrifício.

O evangelho de João, escrito depois dos outros três, não cita Getsêmani ou qualquer outra evidência de uma reação de Jesus ao seu destino. E a maior evidência desta reação, o apelo de Jesus na cruz para que Deus interrompa seu martírio como sustou a mão de Abraão quando este, seguindo suas ordens, preparava-se para imolar o próprio filho, só está em dois dos evangelhos e, curiosamente, nunca recebeu muita atenção nos cânones cristãos.

Mas se Jesus se sente abandonado na cruz, sua história e o significado do seu sacrifício são outros. O Jesus suplicante de Mateus e Marcos não é o mesmo Jesus de Lucas e João. É um homem apavorado diante da perspectiva da morte e do silêncio do Pai, sem entender por que o mesmo poder que lhe permitiu fazer milagres não o salva da execução. Nada é mais humano no Cristo dos dois primeiros evangelhos do que o seu medo.

Antes deste Cristo sacrificado, há as gerações que profetizaram e prepararam a sua chegada, depois virão sua ressurreição e sua glória, mas naquele momento só há o terror da morte comum a todos os homens.

“Eloi, Eloi, lama sabactani.” Quem não ouviu ou não registrou o grito desesperado naquele dia em Gólgota não quis saber de um Cristo perplexo em vez de um Cristo resignado ao seu destino e cúmplice dos seu fim. Mas a perplexidade de Jesus na cruz é o que mais o aproxima de nós.

Mateus e Marcos não escreveram, afinal, só o relato da revolta natural de um condenado à morte, o mistério e a grandeza da cena estão presentes nos seus evangelhos. Mas a frase que os outros ignoraram, e que a Igreja nunca explicou, ainda ecoa, 2 mil anos depois.