sábado, 3 de julho de 2010



04 de julho de 2010 | N° 16386
L. F. VERISSIMO


Depois do clorofórmio

Parece que o Blatter já aceita a ideia de recorrer à tecnologia para evitar erros como aquele chute do Lampard que bateu no travessão, entrou quase meio metro e não valeu. Mas ainda tem gente que resiste, por várias razões.

A tecnologia desprestigiaria os árbitros. Interromperia as partidas e poderia criar mais controvérsias do que as que solucionaria. E, a que parece ser a objeção principal: mudaria o futebol, cujas regras se alteraram muito pouco desde o século 19, e cujo conservadorismo – com erros e tudo – faz parte do seu encanto. Em suma, o futebol perderia sua autenticidade, que inclui a falibilidade de juízes e bandeirinhas e a possibilidade de xingá-los por semanas.

O que me lembrou uma história que contam sobre o C.S. Lewis, medievalista, filósofo do cristianismo, professor respeitado, mas que ficou famoso mesmo como autor de As Crônicas de Nárnia.

Certa vez, Lewis participava de um seminário e ouvia pacientemente enquanto um estudante, querendo agradar ao eminente especialista em História Antiga, discorria sobre a superioridade da Idade Média – quando Igreja, Estado e sociedade compartilhavam uma ideia integrada do mundo e da vida – sobre a era moderna.

O moço lamentava não ter vivido então. Ao que Lewis perdeu a paciência e pediu para ele parar de dizer bobagens.

– Feche os seus olhos – disse Lewis – e concentre sua alma sensível em como seria, exatamente, sua vida antes do clorofórmio.

Conceitos românticos sobre uma vida idílica em um mundo pastoral, antes que a indústria e a ciência a conspurcassem, não levam em conta a ausência de qualquer forma de anestesia, salvo o porre ou o porrete. Além, claro, da ausência de esgoto, água corrente, eletricidade, penicilina e telentrega de pizza.

Achar que a adoção de, por exemplo, um monitor de TV na beira do campo para o quarto árbitro ver se a bola entrou ou não entrou e avisar o juiz comprometeria a pureza do jogo é um pouco como saber que já existe o clorofórmio e não usá-lo, porque sentir dor é mais autêntico.

Agora, você também pode ver o futebol como um último foco de resistência antes que a tecnologia, que já domina o nosso cotidiano, também se aposse de todas as nossas vias de escape, como já acontece nos esportes americanos. Neste caso, é romantismo justificado.

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