sexta-feira, 2 de julho de 2010



02 de julho de 2010 | N° 16384
DAVID COIMBRA


O primeiro contato

Os holandeses são protagonistas de uma longa história nesta região em que Brasil e Holanda se enfrentarão hoje pelas quartas de final da Copa do Mundo.

Ainda agora se percebem vestígios da colonização holandesa na população, sobretudo na língua: em Port Elizabeth fala-se majoritariamente o africâner, um holandês modificado, contaminado pela influência de outras línguas, como o nativo xhosa, o inglês, o malaio e até o português.

Os portugueses, na verdade, foram os primeiros europeus a dar as caras pálidas nessa região. Em fevereiro de 1488, Bartolomeu Dias chegou com suas caravelas vindo do Atlântico. Não desconfiava que, naquele momento, já inscrevera seu nome na história da humanidade. É que, sem o saber, ele havia acabado de dobrar aquele que chamou de Cabo das Tormentas, depois promovido a Cabo da Boa Esperança, perto da Cidade do Cabo, para onde o Brasil irá, se vencer os holandeses.

Ao aproximar-se da praia, Bartolomeu Dias avistou, ao longe, homens negros tangendo rebanhos. Eram os cóis, ou hotentotes. Da terra, os pastores também divisaram as caravelas e se mantiveram alertas, provando como é tola aquela tese contemporânea de que os silvícolas não conseguiam enxergar as caravelas europeias assomando do mar porque jamais tinham visto algo semelhante.

Os portugueses precisavam descer à terra para abastecer-se de água doce e frutas, além de raspar as cracas dos cascos dos navios. Fizeram-no com certa precaução, pé ante pé. Para conquistar a amizade dos locais, valeram-se da estratégia habitual: deitaram no solo contas de vidro coloridas, guizos, barretes e miçangas.

Os hotentotes olharam para aquilo como se fosse quinquilharia comprada em Ciudad del Este. Torceram os narizes batatudos e arremessaram pedras na direção dos intrusos, a fim de empurrá-los de volta ao oceano. Bartolomeu Dias enfureceu-se, tomou de uma arma das mãos de um marujo, fez pontaria e matou um dos agressores, pondo os demais em fuga.

Foi assim, com assassinato, que se deu o primeiro contato entre europeus e africanos do Sul.

Os africanos tinham razão em temer os europeus, como bem se viu nos séculos vindouros, mas não tanto em temer os portugueses. Porque os portugueses não acalentavam a menor intenção de se estabelecer nestas terras inóspitas. Só se interessavam por elas como pontos de abastecimento, paradas de descanso em suas longas viagens para as Índias, onde iriam buscar os temperos que disfarçariam o sabor das carnes levemente putrefatas com as quais se alimentavam naqueles tempos sem freezer ou isopor.

Os holandeses, não. Os holandeses ficaram por aqui, aqui formaram colônias e se radicaram. Mas isso aconteceu mais adiante, dois séculos depois. A essa altura, a Companhia das Índias já atuava e ditava as regras. Uma delas: holandeses e ingleses que se apropriaram de parte das terras não podiam escravizar os hotentotes. Como um europeu podia tocar uma fazenda sem escravos??? O jeito foi importar negros da Angola, de Moçambique e de Madagáscar, bem como indianos e indonésios. E mais e mais se misturavam raças e línguas. E mais e mais a vida ia mudando.

O primeiro casamento cristão entre um branco e uma negra, nestas paragens, ocorreu em meados do século 17. O holandês Pieter van Meerhof casou com a hotentote Eva Krotoa, causando grande sensação na colônia.

Tratava-se, esta Eva, de uma jovem cheia de predicados. Era muito esperta e, diziam seus contemporâneos, dotada de esfuziante beleza negra. Aprendeu holandês e português, e assim trabalhava como tradutora dos europeus. Foi como conquistou o coração alvo de Pieter.

O casamento dos dois foi muito festejado, tiveram um filho, mas, menos de dois anos depois, Pieter morreu durante uma expedição a Madagáscar. A viúva entregou-se à vida dissoluta, concedia seus favores a qualquer um, por uma coisa à toa, uma noitada boa ou um corte de cetim. Os holandeses, puritanos, a expulsaram da sua comunidade e lhe retiraram o filho. Ela tentou voltar aos seus pares, mas entre os hotentotes agora era considerada traidora. Morreu triste e sozinha, a pobre Eva.

Os holandeses continuaram na região. Às vezes lutavam contra os hotentotes, o que não era nada bom; às vezes contra um ou outro leão comedor de gente, o que era bem ruim; às vezes contra os ingleses, o que era infinitamente pior. De uma forma ou de outra, por aqui ficaram e aqui se desenvolveram. Aos poucos, transformaram-se nos bôeres, fazendeiros de moral rigorosa, um tanto toscos, mas sinceros, segundo observação de um filho dileto desta terra, ninguém menos do que Nelson Mandela.

Em suas memórias, Mandela relatou de que forma traumática chegou a essa compreensão a respeito dos bôeres. Aconteceu na véspera do julgamento que o condenaria à prisão perpétua. Ele conversava com um carcereiro bôer amigável, que de repente lhe perguntou:

– O que você acha que o juiz vai fazer com vocês?

Mandela, esperando que o homem o consolasse, o tranquilizasse, respondeu:

– Argh, acho que ele vai nos enforcar.

Mas o guarda ficou sério, olhou para baixo e sussurrou:

– Acho que você está certo. Eles vão enforcá-los.

São esses homens rudes, mas honestos, os holandeses que vivem hoje em Port Elizabeth. Significa que lotarão o Estádio Nelson Mandela Bay para apoiar a seleção da pátria-mãe?

– Acho que não – arriscou Luciângela Hudek, brasileira das Minas Gerais que há 22 anos vive na cidade e que ontem era um dos cem brasileiros esparramados em volta do campo da Universidade Nelson Mandela, tentando, e não conseguindo, ver o Brasil treinar.

Luciângela reconhece que existem muitos holandeses na cidade, mas ressalta:

– O esporte deles é o rúgbi, não o futebol.

Mas é importante frisar que, apesar desta declarada paixão dos bôeres pelo rúgbi e sua indiferença pelo futebol, são os holandeses, não os brasileiros, que prometem invadir Port Elizabeth para assistir à partida de hoje. Às 10h eles devem se reunir em uma Fan-Fest e depois rumar em ruidosa passeata para o estádio no fim da manhã.

Muitos desses serão holandeses egressos da Holanda mesmo, novos holandeses, que não são nem parecidos com os do tempo de Pieter e Eva. Mas entre eles também haverá velhos holandeses, holandeses da colônia, nascidos e criados na África, que também não são parecidos com aqueles dos tempos pioneiros nem com estes da era da internet. São um povo diferente, vivendo em um país diferente.

Muitas mutações estarão no Nelson Mandela Bay, neste jogo decisivo de Copa do Mundo. Holandeses mutantes na arquibancada, futebol mutante em campo. Pois a Seleção Brasileira não é mais como era. É mais cautelosa, mais pragmática. Diferente. A Seleção Brasileira mudou. Como tudo muda no mundo. Prova-o a história da África do Sul.

Uma gostosa sexta-feira e um excelente fim de semana, com o Brasil classificado esperamos.

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