sexta-feira, 11 de janeiro de 2008



11 de janeiro de 2008
N° 15476 - David Coimbra


Moacyr Scliar e o sentido da vida

Encontrei o Moacyr Scliar em frente ao cinema, e foi aí que descobri qual é o sentido da vida.

Porque, quando encontro o Moacyr Scliar, sempre penso: um imortal! Não são seus vários livros que já li que me vêm à mente, nem seus contos encantadores, que são tantos, nem sua personalidade generosa, nada. Penso: um imortal!

Trata-se do primeiro pensamento, claro, mas é um pensamento infalível. Pois existe algo que possa ser mais importante para um homem do que ser imortal?

Foi seguindo esse raciocínio que desvendei os mistérios da existência, ao deparar com o Scliar, dias atrás. Primeiro pensei: um imortal indo ao cinema!

Um imortal que talvez coma pipoca e tome Mirinda! Depois, ocorreu-me que tudo o que o Scliar fizer, a partir de agora, pode ser casual como pegar um cineminha ou lamber um Picolé Espacial.

O Scliar já é imortal, e, na verdade, tudo o que fazemos, nesse Vale de Lágrimas, é buscar a imortalidade. Mesmo os espíritos mais iluminados, como esses senhores da Academia. Um exemplo notável: Guimarães Rosa.

A morte de Guimarães Rosa segue um mistério. Morreu sozinho, a mulher tinha ido à missa, não havia amigo ou parente ou serviçal por perto. Algum vizinho ouviu-lhe o último e desesperado grito: socorro!

Socorro!, gritou Guimarães Rosa, e deixou a cabeça desabar sobre a escrivaninha de trabalho. Assim foi encontrado. O laudo médico apontou infarto. Estava com 59 anos.

De certa forma, Guimarães Rosa previu a própria morte. Fora eleito para a Academia Brasileira de Letras, mas vacilava em tomar posse. Dizia temer não suportar a emoção e morrer em meio ao discurso.

Até que, um dia, inflou o peito de determinação e resolveu assumir a cadeira. Na hora do discurso, de fato, parecia nervoso.

Ainda assim, portou-se bem durante a cerimônia. Só no final meio que embargou a voz, meio que tropeçou no verbo, ele que era mestre do verbo. Três dias depois, morreu nas circunstâncias descritas há um parágrafo.

Olhando para Moacyr Scliar no saguão do cinema, lembrei de Guimarães Rosa. Não que o Scliar já não tenha mais o que fazer entre nós. Tem, e muito, e fará.

Mas Scliar, como Guimarães Rosa, é escritor, é médico e é um imortal da Academia. Ou seja: ambos são imortais duas vezes: pela obra e pelo título.

Porém, o que talvez não seja o suficiente para o Scliar, foi para Guimarães Rosa. Guimarães Rosa, um místico que dizia escrever sob transe mediúnico, acreditou que havia atingido o auge e o fim, que sua missão estava cumprida.

Convenceu-se de que estava pronto para morrer, porque já tinha tudo. Já tinha a imortalidade.

E eis o sentido da vida! Justamente isso: a própria vida. O homem vive para viver para sempre. Vive para ser imortal. É por esse motivo, e quase só por esse motivo, que tem filhos: para continuar vivo na memória de alguém.

Por isso, por já ter atingido a imortalidade, Guimarães Rosa soube que já podia morrer.

Porém, sua vontade de viver era tamanha, era tão poderosa, era tão maior até do que o seu desejo de imortalidade, que, ao sentir o abraço da morte a lhe cingir, gritou por socorro. O imortal pediu, por favor, para continuar vivo.

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