sábado, 5 de janeiro de 2008



06 de janeiro de 2008
N° 15470 - David Coimbra


Encontro com Kafka

Tenho cá, incrustada numa estante da minha pequena biblioteca, a História da Literatura Ocidental, de Otto Maria Carpeaux. Trata-se de uma obra monumental, que se espraia por oito alentados volumes de texto tão informativo quanto saboroso. Em português.

Faço essa ressalva porque Otto Carpeaux era austríaco, veio para o Brasil fugido da Segunda Guerra Mundial e aqui, depois de se tornar íntimo da língua de Camões e Wianey Carlet, é que escreveu sua grande História da Literatura.

O detalhe é que, ao evadir-se às pressas do Velho Mundo, Carpeaux lá deixou a sua, essa sim, enorme biblioteca, exatamente a fonte de consulta com a qual teria de contar para escrever o seu livro. Quer dizer: Otto escreveu tudo...de memória!

Digo isso para deixar claro quem é o homem. Feitas as apresentações, conto que Otto Carpeaux, como seria de se esperar, tinha vasta admiração pelo escritor tcheco-alemão-judeu Franz Kafka. Mais: Otto Carpeaux conheceu Kafka.

A história desse encontro me encantou. Em 1921, Berlim era a capital do mundo intelectual. Tudo de novo, vivo e pulsante acontecia lá.

Otto vivia na cidade como estudante universitário e candidato a escritor, e, a exemplo de todos nessa condição, freqüentava o Café Românico, o correspondente ao Les Deux Margots para os existencialistas de Paris, duas décadas depois.

Algumas mesas do bar estavam reservadas para os já famosos, Heinrich Mann, Arnold Zweig, Werfel. Dessa região, nenhum mortal ousava se aproximar, a não ser que fosse convidado.

Uma noite, o Românico estava especialmente agitado. Não apenas pela presença dos intelectuais, mas também porque entre eles circulava com suas longas pernas uma famosa atriz alemã que granjeava fama de Messalina.

Todos em volta dela, aquela coisa, aquela excitação. Carpeaux, meio desasado, retirou-se para um canto da janela, já ocupado por um rapaz "franzino, magro, pálido, taciturno".

E continua Carpeaux: "Eu não podia saber que a tuberculose da laringe, que o mataria três anos mais tarde, já lhe tinha embargado a voz. Apresentou-se: Kauka. Não entendi, perguntei: Como é o nome? Repetiu: Kauka. Não sabia eu outra coisa para dizer que: Muito prazer. E esse foi o diálogo todo; não muito espirituoso, mas histórico.

Ao sair, perguntei a um amigo: Quem é aquele rapaz magro com a voz rouca? Respondeu: É de Praga. Publicou contos que ninguém entende. Não tem importância".

Os encontros e desencontros de Carpeaux com Kafka não terminariam aí. Cinco anos depois, ele foi até a editora berlinense Die Brücke (A Ponte) a fim de tentar receber por alguns trabalhos que prestara à casa.

O diretor deixou-o esperando por mais de meia hora. Não tendo o que fazer, Carpeaux olhou para os lados e viu uma pilha de livros, todos iguais. Tomou um, abriu-o e começou a ler.

Era a primeira edição de "O Processo", de Kafka. Carpeaux estava distraído, lendo sem prestar muita atenção ao texto, quando um tapa nas costas o surpreendeu. Era o diretor.

- Pagar não posso, meu caro - disse-lhe. - Mas, se você quiser, pode levar, como pagamento, esse volume e mesmo a tiragem completa. O Max Brod, que teima em considerar um gênio esse amigo dele, já falecido, me forçou a editá-lo. É uma droga. Não vendi nem três exemplares. Pode levar tudo!

Carpeaux não aceitou a proposta. Ficou apenas com o volume que havia aberto e o resto foi vendido como papel de embrulho. Justamente aquele volume foi um dos poucos livros que ele conseguiu trazer para o Brasil, durante a Segunda Guerra.

Se tivesse topado o curioso pagamento do editor, Carpeaux seria um homem rico. Mas quem poderia imaginar que Kafka se transformaria no mais célebre, mais cultuado e mais poderoso escritor entre todos os freqüentadores do Café Românico?

Kafka só foi se tornar Kafka muito depois de morto, o que não é incomum em se tratando de escritores. É preciso haver certo distanciamento histórico para apreciá-los como devem ser apreciados.

Com jogadores de futebol, hoje, acontece exatamente o contrário. A fama lhes chega antes da obra. São craques antes de ter jogado. Vide Alexandre Pato.

Não jogou seis meses como profissional, não fez nada realmente importante, mas já tem salário de ídolo, cobertura da imprensa de ídolo e namorada de ídolo. Imagine quando jogar!

Mas, ainda que não jogue, ainda que Alexandre Pato gore, algo se pode dizer: em vida, já foi mais venturoso do que o infeliz Franz Kafka.

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