quarta-feira, 2 de janeiro de 2008



02 de janeiro de 2008
N° 15466 - David Coimbra


O cafezinho do Hélvio

Durante 35 anos, o Hélvio Schneider trabalhou em silêncio na Redação de Zero Hora.

Trinta e cinco anos, e não lembro de ele ter sido protagonista de alguma história que excitasse a imaginação dos colegas, para o bem ou para o mal. O máximo que se dizia do Hélvio, como um gracejo, é que ele jamais gastou um centavo no bar da Redação.

No tempo em que as solicitações no bar eram feitas por comandas assinadas, o Guerrinha dizia que as atendentes achavam que o Hélvio era analfabeto, por ele nunca ter preenchido um único pedido.

Trinta e cinco anos sem ter tomado um cafezinho que fosse, sem ter sido pego de surpresa pela fome no meio de uma tarde de inverno, sem ceder à ânsia de aplacar a sede com um refrigerante gelado.

Calculamos, nós, os colegas do Hélvio, quanto ele economizou nesse tempo de renúncia a pães de queijo e expressos. Fazendo uma média entre os mais gastadores e os mais contidos, chegamos a um total de R$ 60.440. Sessenta mil reais!

A austeridade do Hélvio era tanta que ele não aceitava nem o que fosse de graça. Quando ocorria alguma festinha de aniversário na Redação, o Hélvio cantava o Parabéns a Você, mas não comia os totozinhos, não bebia a Coca-Cola.

Alguém vinha com uma barra de chocolate, com um saco de biscoitos, com uma guloseima qualquer, e o Hélvio sempre agradecia com um sorriso simpático. E recusava.

O Hélvio era o único dos 230 jornalistas de ZH, talvez o único dos mais de mil jornalistas da RBS, que não dispunha de uma gaveta para ele na Redação. Não queria. Não precisava. Os horários do Hélvio não variavam, nem o de chegada, nem o de saída.

O Hélvio era em tudo discreto, em tudo mansidão, e a tudo a que se dedicava fazia-o com competência. Era um editor preciso e um redator de texto escorreito. Trabalhou sempre nos mesmos setores do jornal, nas imediações da Editoria de Geral.

Não lembro de tê-lo visto de mau humor ou triste, algum dia. Sempre sorria, era sempre simpático, embora não fosse de muito tagarelar. Três ou quatro vezes elogiou colunas minhas, e arquivei esses elogios como galardão.

O Hélvio só se aproximava das fronteiras do arroubo por um motivo: pelo Grêmio. Trata-se de um gremista dedicado, atento e orgulhoso. Cheguei a ver o Hélvio vibrar em gols do Grêmio, nos jogos que ele acompanhava pela TV do Esporte espiando as imagens meio de lado, meio de longe, meio já saindo.

O que me levava a refletir a respeito do poder que o futebol exerce sobre o espírito humano. Nem o Hélvio resiste às emoções do futebol.

Na última sexta-feira de 2007, o Hélvio nos surpreendeu a todos, nós seus colegas. De manhã, ele apareceu no jornal fora de seu horário de trabalho, sentou-se ao terminal e deixou, no sistema de mensagens interno da Redação, uma despedida.

Estava se aposentando, comunicou. Depois, levantou-se da sua cadeira e foi embora. Poucos dos novos jornalistas de ZH conhecem o Hélvio, mas nós, os mais antigos, íamos chegando e nos surpreendendo:

- O Hélvio...

E falávamos sobre a sua discrição, sobre a sua elegância, sobre a sua simpatia e sobre aquela sua característica curiosa, de jamais ter despendido um único centavo no bar da Redação, de ser um econômico atroz. Assim passou o dia. À noitinha, a Redação estava alvoroçada com o horário de baixamento, quando o Hélvio nos surpreendeu mais uma vez.

Por sua ordem, e às suas expensas, chegaram entregadores com garrafas de champanha, inúmeras garrafas de champanha geladas, chegaram pizzas gigantes de variados sabores, chegaram doces, tortas, acepipes e foram depositados sobre as mesas da sua editoria e todos foram convocados para o piquenique inesperado.

No seu último dia de trabalho, sem a sua presença, o Hélvio patrocinou uma festinha de despedida para os seus colegas de tanto tempo. A Redação inteira se reuniu em volta da cadeira vazia onde o Hélvio trabalhou em silêncio durante 35 anos.

Todos comeram, riram e brindaram, alguns perguntavam por ele, e se espantavam por ele não estar lá, outros ensaiaram o coro de Hélvio, Hélvio, Hélvio, no congratulamos, nos abraçamos e falamos muito do nosso amigo que se retirou para a dolce far niente. Trinta e cinco anos!, exclamávamos, admirados.

Trinta e cinco anos, e o Hélvio, jornalista quase calado e gremista quase exacerbado, enfim, foi o assunto da Redação!

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