sexta-feira, 31 de maio de 2024


31 DE MAIO DE 2024
CARPINEJAR

O poeta da enchente

Numa de minhas oficinas de poesia, eu tive um aluno brilhante, de raciocínio límpido, que elaborava inversões e perguntas rápidas com sagacidade filosófica. Ele se sentava no fundo. Um mineiro de 26 anos, educado e atento, de boina cinza e barba rala. Recém havia se mudado para Porto Alegre.

A anedota é que ele veio acompanhar a mãe em seu novo trabalho como pedagoga no IPA, mas ela voltou para Minas Gerais e ele ficou.

Aquele estudante curioso e ávido de saber se tornaria o poeta Guto Leite, titular de Literatura Brasileira na UFRGS, autor de oito livros de poemas, entre eles, Entrechos ou Valas do Silêncio (2012). Não bastando seu dom em arrancar suspiros, fazer silêncios e encaixar rimas, assumiu também o papel de compositor e cantor, com os discos Brique (2015), Dez Canções Sem as Quais Você Não Poderá Viver Nem Mais um Segundo (2016) e Máquina do Tempo (2021). Ganhou tanto o prêmio Açorianos de Literatura quanto o de Música. Já assisti a seu pocket show, e ele realmente domina o palco com sua conversa sussurrada, criando uma intimidade súbita com o público.

Acredito que é até um atentado alguém ter tantos talentos e encontrar tempo de ser simpático e acessível. Num dos ciclos maravilhosos da existência, meu aluno virou professor de minha filha e um de seus mestres prediletos.

Confio que todo bom aluno é um professor em potencial. Ele reside no térreo de um prédio na Avenida Praia de Belas. É porto-alegrense com orgulho, pai de dois filhos gaúchos, Theo e Gael, casado com a advogada Larissa.

Infelizmente, a sua história inteira por aqui se esvaiu. Não sobrou nada de seu apartamento depois da maior enchente da história do Rio Grande do Sul. Perdeu sua biblioteca de 2 mil livros, seus discos, os desenhos das crianças, seus estudos, seus prêmios. O mobiliário ficou irreconhecível, um objeto sobre o outro, num entrevero de escombros. 

Não tem como distinguir o que é quarto do que é sala. Passou um liquidificador do Guaíba no espaço, sem nenhuma mansidão. Mais de dois metros de água tomaram seu cantinho, apagaram seus documentos, corromperam sua memória, limparam sua escrivaninha, atingindo frontalmente uma vida feita em papel.

O caos chegou que nem "balsa, valsa, no seu colo", como diz em um dos seus versos. Arrombou a porta, saqueou seus armários, usou suas roupas, levou seus pertences. Num gesto premonitório, escreveu um poema em janeiro que parecia avisar o que sofreria em maio:

"naquela primavera não entendi o alvoroço: ver o guaíba avançar pelo centro, o fechar inútil das comportas, os carros submersos, os ratos escalando bueiros junto às baratas obras de escoamento, o alagar de avenidas aterradas, a praia de belas se tornar praia, o beira-rio beirar o rio, o curso caudaloso do arroio dilúvio dar susto nos ciclistas".

Não dava para crer que a cheia se repetiria após a última aparição fantasmagórica em 1941. Mas a sua intuição lírica advertiu que algo estava errado desde setembro de 2023, com a destruição do Vale do Taquari.

A pior sensação para Guto não foi ter retornado para a sua casa, é lembrar aos poucos, dia a dia, o que sumiu. Vai, gradualmente, de acordo com as necessidades, recordando mais um item desaparecido, mais um item irrecuperável: edições autografadas e raras, relógio antigo de pulso, louça preferida, coletâneas de que participou na juventude.

É como se tivesse regredido, voltado a morar em Porto Alegre, tudo de novo, do zero, como há 16 anos, quando era um estudante esperançoso, de boina cinza e barba rala.

CARPINEJAR

31 DE MAIO DE 2024
OPINIÃO DA RBS

IMPORTAÇÃO ATABALHOADA

Mostra-se bastante atabalhoada a operação montada pelo governo federal para importar até 1 milhão de toneladas de arroz. A justificativa seria garantir o abastecimento doméstico e evitar uma alta especulativa de cotações em função de tragédia climática no Rio Grande do Sul, responsável por 70% da produção nacional. O próprio ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, defendeu a iniciativa alegando uma elevação de preços "de 30% a 40% em um mês", o que classificou de "inconcebível". De fato, seria.

É verdade que, logo após o início das enchentes, o mercado foi tomado por rumores. Mas os números de inflação ao consumidor mais recentes contam uma história diferente. Conforme o IPCA-15 de maio, divulgado na terça-feira, o preço do arroz no país recuou 1,25% ante o mês anterior. Isso não significa que está barato para os brasileiros. Pelo contrário. Tanto que, em 12 meses, a alta é de 25,9%, por fatores domésticos e internacionais de oferta e demanda anteriores. Inexiste qualquer relação com as cheias recentes, portanto.

No último dia 20, o governo federal teve de suspender um leilão para importar arroz do Mercosul. Fornecedores dos países vizinhos elevaram de forma abrupta as cotações pelo movimento de compra há pouco inesperado pelo mercado. A operação acabou abortada pela especulação, algo que o governo afirmava tentar combater. Agora, a intenção é adquirir de nações produtoras de fora do bloco, após a decisão de zerar as tarifas que existem para as importações de fora do Mercosul. O primeiro leilão, para 300 mil toneladas, está previsto para o dia 6 de junho.

Causa ainda espécie saber da intenção do governo de colocar o grão à venda no varejo em pacotes rotulados com o dizer "Arroz adquirido pelo governo federal". Também teriam a logomarca da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). São bastante plausíveis as conclusões a apontar que, ao fim, se aproveitaria uma oportunidade para fazer propaganda governamental com o objetivo de alavancar a popularidade da gestão Luiz Inácio Lula da Silva.

Essa hipótese de viés populista é reforçada pela decisão de comercializar o produto a R$ 4 o quilo para os consumidores. O governo diz que seria cerca de 20% abaixo da média de preços encontrados nos supermercados. Mas quem vai às compras constata que o desconto oficial parece bem maior. Ademais, é um tabelamento que, mostra o passado, pode trazer um alívio fugaz ao consumidor, mas em seguida piora o problema que tentaria resolver.

Pode até existir uma preocupação genuína com o preço de um componente básico da dieta dos brasileiros. Mas o risco é criar um desequilíbrio no mercado que desestimule os produtores de arroz para a próxima safra. Um dos principais componentes da alta observada nos preços no ano passado é a queda da área de plantio no Estado ao longo dos anos pela falta de rentabilidade da cultura, além da postura de outros países, como a Índia, de reter exportações. Se existiu, agora, uma elevação especulativa nos supermercados espalhados pelo país, foi pontual, alimentada por fake news e incertezas logísticas. Caso o governo pretenda colocar de forma duradoura um arroz mais em conta no prato dos brasileiros, o mais ajuizado é não desestimular a produção nacional, em especial a gaúcha.


31 DE MAIO DE 2024
POLÍTICA +

Gestão de sistema anticheia gera atrito

Presente na reunião com o ministro Rui Costa, o prefeito Sebastião Melo diz que a discussão foi "muito incipiente". Melo não se opõe a repassar a gestão ao governo estadual, desde que a prefeitura continue participando das decisões.

- Seja em uma composição tripartite ou com gestão do governo do Estado, o município não pode ser eximir disso - afirmou Melo.

A discussão a respeito da mudança na gestão dos sistemas de proteção contra enchentes do Rio Grande do Sul motiva um atrito entre os governos estadual e federal. O Palácio Piratini concorda em assumir o encargo, que hoje está sob responsabilidade das prefeituras, mas diz que antes é preciso definir como será a nova gestão e como se dará o financiamento da atividade.

O repasse da operação ao governo estadual foi discutido na quarta-feira entre o governador Eduardo Leite, prefeitos da Região Metropolitana e ministros do governo Lula, em reunião fechada. Em entrevista coletiva, no mesmo dia, o titular da Casa Civil, Rui Costa, uma espécie de "gerente" da administração federal, apresentou a ideia como uma recomendação do Palácio do Planalto.

- Nossa ideia é o governo federal fazer o investimento, mas gostaríamos que o governo do Estado assumisse a responsabilidade da gestão do sistema - anunciou.

Ontem, o governador disse que reivindicou esse papel antes da sugestão de Costa e revelou desconforto com a postura do ministro:

- Minha forma de trabalhar é diferente. Prefiro acertar as coisas primeiro, e depois a gente anuncia. Eventualmente, se fazem anúncios sobre intenções antes de amarrar todas as pontas - disse Eduardo Leite.

O governador explicou que, antes de o Estado assumir a função, é preciso definir como funcionaria a gestão (se por meio de uma empresa pública, uma autarquia ou um departamento, por exemplo) e como se daria o financiamento da operação. Além disso, o governo estadual dependeria de mudanças nas atuais regras do Regime de Recuperação Fiscal (RRF) para criar a nova estrutura.

- Entendo que o governo deva atuar sobre uma área em que não atuava, que é gerenciar e monitorar os sistemas de proteção contra cheias, mas se não tiver a questão fiscal resolvida, para poder criar uma estrutura e definir como o Estado cuidará disso, não vamos conseguir abraçar essa responsabilidade - explicou Eduardo Leite.

A alteração no comando dos sistemas ainda dependeria de acordo com as prefeituras.

No caso da Região Metropolitana, os sistemas foram concebidos pelo Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS). A partir da extinção do órgão, em 1990, no governo Fernando Collor, os municípios assumiram a operação, alguns por convênio com a União, outros por acordos informais que nem sequer foram formalizados.

PAULO EGÍDIO INTERINO


31 DE MAIO DE 2024
DANIEL SCOLA

Precisamos falar mais

Sobre poluição. Sobre responsabilidade nossa e dos governos. Sobre meio ambiente. Sobre a natureza. Sobre leis ambientais. Sobre desmatamento. Sobre lixo. Sobre como fazemos o descarte. Sobre efeito estufa. Sobre dióxido de carbono. Sobre esgoto. Sobre drenagem. Sobre encanamento. Sobre mudança climática. Sobre reconstrução. Sobre energia. Sobre alternativas. Sobre bioma. Sobre vidas. Sobre plano de contingência. Sobre prioridades.

Sobre o muro da Mauá. Sobre medidas preventivas. Sobre a forma como gastamos nosso dinheiro. Sobre casas construídas em locais ameaçados. Sobre infraestrutura em transporte. Sobre fornecimento de água. Sobre serviços públicos em geral. Sobre casas de bombas. Sobre morar à beira de rios e açudes. Sobre morar no térreo de prédios. Sobre garagens subterrâneas. Sobre riscos. Sobre comunicação pública. Sobre esclarecimento. Sobre transparência. Sobre capacidade. Sobre competência. Sobre reação. Sobre drenagem. Sobre desmatamento.

Sobre dragagem. Sobre assoreamento. Sobre adaptação. Sobre cheias. Sobre rios. Sobre o Arroio Dilúvio. Sobre alertas. Sobre líderes. Sobre ciência. Sobre leptospirose. Sobre previsão do tempo. Sobre escoamento. Sobre saúde. Sobre culpados. Sobre diques de contenção.

Algumas pessoas já discutem esses temas. Mas todos nós, sem exceção, precisamos incluí-los no nosso roteiro diário e discuti-los à exaustão. Quem ainda não fez isso, precisa começar do zero e parar de jogar a culpa no próximo. E devemos entender que todos temos que saber lidar com isso. O dedo da culpa está apontado para todos nós. O Rio Grande do Sul vive um momento crítico, e passou da hora de falarmos sobre tudo isso para depois ninguém se eximir de culpa.

Quanto mais aberto for o debate, melhor. É preciso parar com a polarização e com partidarização, como se tudo fosse um jogo de interesses mirando a próxima eleição. Estamos todos saturados com isso. Agora ninguém se acha culpado e todo mundo tem a fórmula pronta. Mas, se existia caminho, por que não se fez? Por que alertar só agora? É cômodo julgar depois da tragédia! Por isso e muito mais, precisamos falar de tudo. E com muita seriedade, pois a enchente de 2024 pode se repetir.

DANIEL SCOLA

31 DE MAIO DE 2024
INFORME ESPECIAL

Correndo pelo RS Vem aí

O jornalista Ticiano Osório, colunista de filmes e séries do Grupo RBS, vai lançar seu segundo livro. Depois de O Morcego e a Luz: 80 Anos de Batman no Cinema (editora BesouroBox, 2023), agora ele reunirá textos sobre 50 longas-metragens que despertaram uma paixão fulminante ou conquistaram aos pouquinhos. "Às vezes, a gente precisa de uma distância para enxergar melhor, de um tempo para sentir saudade", explica Ticiano na introdução da obra, que será publicada pela Arquipélago Editorial. 

O autor prefere, por enquanto, manter em segredo o título, mas revela alguns destinos visitados nesse passeio cinematográfico: vai do Senegal ao México, da Dinamarca à Colômbia, do sertão de Pernambuco a uma ilha deserta na França, da antiga Hollywood à reconstruída Hiroshima.

Depois de reunir cerca de 7 mil corredores (incluindo atletas de elite) na Capital, em abril deste ano (foto), a maratona New Balance 42K Porto Alegre está com inscrições abertas para 2025, com uma novidade: parte da arrecadação será destinada a ajudar o Rio Grande do Sul. 

A ação Correndo pelo RS beneficiará o Instituto Moinhos Social, ligado ao Hospital Moinhos de Vento, com R$ 30 por pessoa inscrita. A entidade tem projetos nas áreas de educação, saúde, assistência social, meio ambiente, cultura e esporte. Os participantes também poderão fazer contribuições para a instituição no site oficial da corrida. Para aderir, basta acessar newbalance.com.br/corrida-nb-42k-poa.

Música nos abrigos

O professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS Antônio Domingues Benetti, doutor em Engenharia Civil e Ambiental pela Universidade Cornell (EUA), alerta que, passado o período agudo da crise causada pelas enchentes no RS, as companhias de saneamento terão de revisar seus planejamentos para evitar novos episódios de desabastecimento de água potável. Uma recomendação é a elaboração de Planos de Segurança da Água (PSAs).

Como as companhias podem se preparar melhor?

Devem fazer uma avaliação crítica de seus sistemas de abastecimento de água para antecipar problemas e prever soluções imediatas. Se uma estação de recalque inunda, já existem bombas alternativas para substituí-la imediatamente? Se uma estação de tratamento de água para, que manobras na rede de distribuição podem ser feitas para não ser interrompido o abastecimento em áreas das cidades?

E em relação à Capital?

A principal causa foi o colapso do sistema de proteção contra cheias, com manutenção relapsa. Desencadeou dificuldades em série no abastecimento. Por vários dias, o tratamento foi interrompido por inundações nas estações de recalque. A água teve contato com esgotos cloacais, produtos químicos, combustíveis e resíduos sólidos. A turbidez, pela erosão do solo, ficou altíssima e dificultou o tratamento. A intermitência no abastecimento favorece a ressuspensão de materiais sedimentados na rede de distribuição e reservatórios.

Na Capital, falta de energia é recorrente. Como resolver?

O fornecimento de luz para as estações de tratamento é responsabilidade da companhia de energia, que tem falhado. Mas as empresas de saneamento devem prever esses casos e ter alternativas. É difícil especificar soluções sem estudar com profundidade os sistemas, mas algo possível seria a adoção de geradores móveis ou manobras de operação das redes de distribuição.

O que são os Planos de Segurança da Água (PSAs)?

São instrumentos desenvolvidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para assegurar o abastecimento de água potável e a proteção da saúde das comunidades. É um procedimento proativo de avaliação e manejo de riscos que contempla do manancial à torneira do consumidor. Ajudam as empresas de saneamento a aumentarem a resiliência de seus sistemas, antecipando problemas, propondo respostas efetivas e auxiliando na fase de recuperação dos eventos. Devem considerar as incertezas associadas a um clima que está mudando. A OMS recomenda que todos os sistemas de abastecimento de água potável, grandes ou pequenos, façam PSA. Seus benefícios incluem uma melhor qualidade da água, a diminuição de episódios de desabastecimento e a redução de custos.

Onde há bons exemplos?

São adotados em vários países, desenvolvidos ou não. No Uruguai, a empresa responsável, Obras Sanitarias del Estado (OSE), implantou planos em todos os seus 60 sistemas de abastecimento de água. Ajudou o país a enfrentar, não sem dificuldades, a maior estiagem de sua história, em 2023. Um PSA é confiável porque envolve o conhecimento profundo dos sistemas de abastecimento, identifica e prioriza riscos, planeja e implanta melhorias, monitora, fortalece instrumentos de gestão e faz revisões periódicas para comprovar a eficiência. É elaborado por equipe multidisciplinar, com profissionais de projetos, saúde pública, gestão, operação, monitoramento e grupos de interesse, com o comprometimento dos gestores das companhias.

O Quarteto de Cordas da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) está levando música - e um pouco de leveza - a abrigos instalados na Capital (foto). A iniciativa faz parte da Rede de Ações Culturais de Emergência, criada pela Secretaria de Estado da Cultura para acolher e confortar quem perdeu tudo na enchente.

A primeira mobilização ocorreu na terça-feira, em um abrigo do bairro Rio Branco.Com repertório diversificado, o quarteto interpretou músicas populares, canções gaúchas e até cantigas infantis - tudo pensado sob medida pelos artistas, os violinistas Paulo Barcelos e Geraldo Moori, o violista Delmar Breunig e o violoncelista Deolindo de Azambuja.

- Foi muito bonito. Vamos seguir contribuindo para tentar reduzir um pouco do sofrimento de quem está longe de casa - diz o presidente da Fundação Ospa, Gilberto Schwartsmann.

Além da música, a iniciativa da rede envolve equipes do programa educativo do Museu de Arte Contemporânea do RS, da Biblioteca Pública do Estado, do Centro de Desenvolvimento da Expressão e do Sistema Estadual do Livro.

- Contribuir para que essas pessoas tenham um momento de pausa no sofrimento emocional nos conforta também - destaca a secretária da Cultura, Beatriz Araujo.

INFORME ESPECIAL

quinta-feira, 30 de maio de 2024


30 DE MAIO DE 2024
CARPINEJAR

Segurança de volta

Testemunhamos cachorros traumatizados nos abrigos. Nadavam no ar. Nadavam no sono. Não conseguiam mais se acomodar dentro de suas casinhas de pet. Procuravam ficar no telhado, na parte mais alta de qualquer lugar, com receio de que a correnteza, o medo, a dor voltassem.

Se os cachorros estão seriamente sequelados, o que dizer dos moradores vitimados pelo desastre? Como retornar para casas que já foram invadidas por mais de uma enchente? Casas reincidentes, que já foram refeitas e acabaram novamente destruídas? Como acreditar que agora as cheias não vão mais se repetir?

Como dar segurança aos necessitados do Vale do Taquari, que já perderam tudo? Não foi uma, foram várias enchentes em maior ou menor grau. Quatro golpes nos últimos anos, despejando trabalhadores de seu lar, retirando seus pertences. Como recuperar a confiança e a credibilidade? Qual medida receberão das autoridades, qual imunidade terão do governo?

Como não tremer durante uma nova tempestade? Como não desconfiar da força do vento e da fúria do rio? Como confortar os filhos na hora de dormir, afirmando que podem descansar tranquilos, em paz, que podem voltar a pensar unicamente na escola, que não mais precisarão sair correndo do quarto pelo avanço das águas, em madrugadas desesperadas de evacuação?

São meio milhão de desabrigados, que se encontram em alojamentos provisórios ou residências de parentes e amigos.

De que modo acontecerá a realocação?

Exige-se uma mudança de mentalidade, já que entendíamos como área mais nobre da cidade a que estava mais próxima do rio, com o comércio e os serviços essenciais no entorno. Os parâmetros serão outros. A segurança deverá prevalecer em detrimento da paisagem.

Áreas verdes de proteção ambiental não poderão ser mais povoadas, nem clandestinamente. Não poderá existir vista grossa eleitoreira, omissão oportunista. Não poderá ocorrer desmatamento.

Teremos que desenvolver terrenos mais altos, mas que não sejam propensos ao risco de deslizamentos de terra pela chuva. Nossa topografia não ajuda com vales e encostas, com estradas serpeando pelos corredores da natureza. Não há margens seguras para moradias em alguns municípios.

E como propor que habitantes de terrenos seculares se desloquem para territórios sem valor comercial, longe do emprego, da escola, do centro urbano?

Como abandonar o único espaço que se conhece, virar as costas para uma escritura conquistada com suor e esforço? Como largar o seu cantinho, ainda que demolido, e não temer saques e invasões, em ondas de violência social agravando a devastação?

CARPINEJAR

30 DE MAIO DE 2024
OPINIÃO DA RBS

APOIO TEM DE CHEGAR À PONTA

Com alguma demora, um mês após o início das chuvas que causaram a mais destruidora enchente já vista no Estado, o governo federal anunciou ontem um pacote de R$ 15 bilhões em financiamentos para apoiar o reerguimento de empresas gaúchas atingidas. O anúncio inclui companhias de maior porte, o que faltou após a enxurrada de setembro do ano passado no Vale do Taquari.

As condições das operações, conforme exigia a gravidade da situação, são especiais. O elemento que melhor ilustra essa excepcionalidade é o juro de 1% ao ano para duas linhas que contemplam a compra de máquinas e equipamentos, obras e projetos de investimentos. Mesmo o crédito emergencial para capital de giro, fôlego indispensável neste momento, terá o juro de 4% ao ano, muito próximo da inflação projetada para 2024. Mais detalhes podem ser conferidos na página 7 desta edição.

No Brasil, todavia, costuma existir um hiato entre medidas governamentais anunciadas com estardalhaço e o que chega de fato à ponta. A prioridade, a partir de agora, é se certificar de que os empreendedores poderão acessar os recursos com a menor burocracia possível e sem as exigências convencionais. A promessa de agilidade e simplificação de processos por parte do governo federal foi reiterada ontem. Será preciso permanecer atento e cobrar caso surjam obstáculos até justificáveis em épocas de normalidade, mas não neste momento.

O amparo para o Rio Grande do Sul se reconstruir economicamente depende de ações sincronizadas em diversas frentes. A situação das empresas é distinta. Há companhias que foram afetadas pelas enchentes e aguardam ajuda financeira para voltar a operar. Outras, em importantes áreas da Região Metropolitana, sequer têm noção do prejuízo por ainda estarem com as instalações alagadas. Existe ainda o grupo que, mesmo sofrendo alguma perda, está apto a continuar a produzir e transacionar, mas tem a situação prejudicada pela logística. A dificuldade para receber insumos e despachar mercadorias, inclusive para fora do Estado, é um empecilho a mais. Assim, a atenção à recuperação das estradas também é basilar. Disso depende a sobrevivência de negócios e a manutenção de empregos.

O Rio Grande do Sul, além do fato em si de ser o quarto maior PIB do país, tem uma economia integrada com os demais Estados. Presta e recebe serviços, compra e vende para outras regiões. Um dos inúmeros exemplos está na indústria automobilística. A montadora Volkswagen teve de paralisar três unidades em São Paulo que recebiam peças fabricadas no Rio Grande do Sul. A catástrofe climática gaúcha também afetou as projeções nacionais de PIB e de inflação.

Dar suporte ao Estado em meio a uma tragédia sem precedentes, portanto, significa mais do que socorrer apenas os cidadãos, agricultores e empresários urbanos rio-grandenses. Trata-se de uma medida necessária para evitar solavancos na economia nacional.

Prefeituras e o Palácio Piratini têm suas atribuições e responsabilidades nos esforços para recolocar o Rio Grande do Sul de pé. Mas é o governo federal o ente público dono da maior capacidade orçamentária e de meios para criar instrumentos que possam contribuir para o Estado se levantar. É por esse motivo que as maiores expectativas e cobranças recaem sobre Brasília.


30 DE MAIO DE 2024
DEBATE

Reconstrói RS reúne aporte e ações visando recuperação

A recuperação do Rio Grande do Sul após a enchente histórica passa por esforços em diversas frentes. No setor privado, iniciativas como o programa Reconstrói RS emergem para unir o espírito empreendedor e comunitário em prol de ações que sejam rápidas e resolutivas na reconstrução do Estado.

O projeto é liderado por Instituto Ling, Instituto Floresta e Federação de Entidades Empresariais (Federasul) e foi tema de reunião do Tá na Mesa. O evento promovido semanalmente pela federação foi retomado ontem, de forma online, já que o Palácio do Comércio, sede da entidade, passa por reparos depois da enchente.

O presidente da Federasul, Rodrigo Sousa Costa, disse que, passada a primeira etapa de enfrentamento da catástrofe, o Estado entra agora em fase de superação e de resiliência. Para isso, reforçou que a entidade e o setor empresarial darão apoio para a retomada dos negócios e das cidades:

- Com este projeto, temos a oportunidade de trazer o espírito comunitário e a capacidade de empreender, que precisaremos muito no Estado do Rio Grande do Sul.

William Ling, presidente do Instituto Ling, disse que uma das inspirações para a concepção do projeto veio de Nova Roma do Sul, que reconstruiu uma ponte destruída pelas águas em tempo recorde no ano passado.

- Estamos estimulando que as comunidades se organizem, busquem cooperação, juntem recursos e entraremos para alavancar e complementar para que se viabilize rapidamente e sem intermediação - disse Ling.

Os detalhes de como vai funcionar o aporte de recursos serão divulgados nos próximos dias. Enquanto isso, as entidades incentivam que os municípios ganhem tempo elencando os seus projetos prioritários para buscar a cooperação.

O Instituto Ling será a estrutura jurídica que irá canalizar os recursos direcionados para cada obra. O pré-anúncio do projeto foi feito em Nova York, no início do mês, onde foi revelado um fundo financeiro que hoje já conta com R$ 80 milhões para ajudar na construção do Estado.

Iniciativas

O presidente do conselho do Instituto Cultural Floresta, Claudio Goldsztein, citou ações como a compra de mais de 300 antenas starlink para garantir a cobertura de sinal de internet em diversos municípios. Foi criado um centro de distribuição para receber os donativos de quem preferir fazer doações diretas.

- Este é o trabalho atual e agora estamos com olhos para os projetos de reconstrução - disse.

O vice-presidente de micro e pequenas empresas da Federasul, Douglas Ciechowicz, disse que os entes privados entenderam a sua importância na atuação desta crise em específico, dando celeridade aos processos:

- As associações comerciais têm de atuar para conseguir recursos e atingir o maior número de pessoas num curto prazo.

Rafael Goelzer, vice-presidente de integração da Federasul, acrescentou que o projeto Reconstrói RS vai muito além dos valores financeiros empregados.

- Ele trabalha os valores da alma, do altruísmo, do associativismo empreendedor, o interesse social, e, mais do que isso, a capacidade de transformação que a sociedade tem unida - destacou.

BRUNA OLIVEIRA

30 DE MAIO DE 2024
TULIO MILMAN

Senhores passageiros

"Eu me sinto constrangido por não ter falado nesse assunto nos últimos anos". A frase é de um amigo, empresário e cidadão gaúcho. Conversamos sobre a enchente durante a semana. Diante da afirmação feita por ele, emendei: "Eu também".

É impressionante o bombardeio a que estão sendo submetidos os nossos governantes, como se eles tivessem o dever de pensar em um tema sobre o qual quase ninguém pensava. Fico imaginando os comentários, inclusive os meus, se o prefeito da Capital, o governador e o presidente da República tivessem afirmado, durante suas campanhas eleitorais, que investiriam milhões de reais em bombas flutuantes e em outros equipamentos e obras de prevenção à enchente no Rio Grande do Sul. Logo nos perguntaríamos quais interesses estavam por trás dessa intenção.

Fui mediador de debates para o governo do Estado e para as prefeituras nos últimos anos. Até onde me lembre, os temas mudança climática e enchente nunca apareceram, nem nas minhas perguntas, nem nas dos eleitores, nem nas feitas entre os candidatos. Não conheço ninguém que tenha levado em conta esses assuntos na hora de decidir em quem votar.

Vejo com tristeza um processo de enfraquecimento dos nossos líderes, eleitos pelo voto, na hora em que mais precisam de apoio e de força. É como se um avião estivesse enfrentando uma grande turbulência e uma parte dos passageiros invadisse a cabine para xingar o piloto. É fundamental questionar e apurar responsabilidades, mas isso é bem diferente de sabotagem e furor condenatório.

Agora é hora da solidariedade e do trabalho. Gostaria, por exemplo, de ver os ex-prefeitos de Porto Alegre unidos e ajudando a cidade. Quem sabe formando um grupo suprapartidário de apoio, todos juntos.

A onipotência leva muitos a pensar que o Estado é apenas um estorvo. Não entenderam a pergunta, mas têm absoluta convicção da resposta. Estado não precisa ser grande nem pequeno. Precisa ser eficiente naquilo que deve fazer. Democracia é respeitar o voto, principalmente o divergente.

Hoje, temos prefeitos, governador e presidente eleitos, gostemos deles ou não. O melhor, para todos, é que, na hora da crise, eles tenham força, confiança e apoio para fazer o que deve ser feito. O resto é politicagem, vaidade e egoísmo.

TULIO MILMAN

30 DE MAIO DE 2024
INFORME ESPECIAL
Juliana Bublitz

O socorro que vem a galope

Radicado em São Paulo, o artista plástico gaúcho Claudio Ramires não conseguia dormir, ao ver o Rio Grande do Sul submerso pela enchente. Precisava fazer alguma coisa, mesmo de longe. Angustiado, juntou retalhos de zinco, rebitou as peças na madeira e, num rompante, pintou Caramelo (ao lado), símbolo da resistência sulina na catástrofe climática. Na testa do cavalo, o artista estampou o mapa do Brasil, solidário ao RS.

Junto de outra obra-prima do autor, chamada Guedali (leia abaixo), o quadro será leiloado para ajudar moradores do 4º Distrito de Porto Alegre, onde vem sendo construída a sede do Museu de Arte Contemporânea do Estado (MACRS). O leilão online (em www.pestanaleiloes.com.br/agenda-de-leiloes/4470) será na próxima segunda-feira, às 20h, e já está recebendo lances. Todo o valor arrecadado será destinado a ações de ajuda à comunidade afetada, por meio da associação dos amigos do museu.

Recupera 4D

Uma das regiões mais promissoras de Porto Alegre, conhecida por concentrar empreendimentos inovadores e abrigar o polo cervejeiro da Capital, luta para se recompor. Ainda coberto de lama, repleto de lixo e entulhos e com água cobrindo parte das ruas, o 4º Distrito, tantas vezes abordado aqui na coluna, precisa de apoio.

O estrago foi tão grande que há o temor de que a região sofra uma debandada depois da tragédia climática, o que seria péssimo para a cidade. Para que isso não ocorra, um grupo de amigos, vizinhos e empresários locais fundou um movimento chamado Recupera 4D.

A ideia é unir forças para, primeiro, higienizar vias, casas, prédios, garagens, comércios e empresas e, depois, batalhar por melhorias, inclusive para garantir maior segurança contra futuras cheias no Guaíba.

- Crescemos na região, fizemos amigos aqui, temos pais e avós morando na vizinhança e muitos de nós viraram empreendedores no 4º Distrito. Estamos fazendo uma corrente de solidariedade para que as pessoas possam voltar para casa, reabrir seus negócios e permanecer - diz Raí Nunes dos Santos, um dos idealizadores da iniciativa e sócio da cervejaria Cubo, que também foi atingida.

Ao longo do feriadão, o grupo fará uma série de mutirões de limpeza em diferentes pontos. Uma das ações está marcada para hoje, a partir das 9h30min, na Avenida Guido Mondim, nº 743, bairro São Geraldo, para aproveitar o dia de folga e a previsão de tempo bom. Todos são bem-vindos. Se você quiser e puder ajudar, siga @recupera4d no Instagram e se inscreva em bit.ly/recupera4d.

Em acrílico e folha de ouro

Leiloada para ajudar vítimas das cheias no 4º Distrito, a obra Guedali (ao lado) foi inspirada em um dos mais conhecidos livros de Moacyr Scliar, O Centauro no Jardim, musicado por Hique Gomez (é ele segurando o violino).

Para Claudio Ramires, autor do quadro, a identificação do centauro com o Rio Grande "é indelével e faz dele quase que um mito fundador da nossa cultura pampeana".

Em acrílico e folha de ouro, a tela vai participar de exposições internacionais durante os meses de junho a outubro de 2024, em Andorra e nas cidades de Hamburgo, na Alemanha, e Lisboa, em Portugal. Depois disso, em novembro, será entregue pelo artista ao comprador.

Atenção para o golpe

Este é um alerta da Defesa Civil Estadual, mas não é o que você está pensando - nada a ver com o clima. Tem gente mal-intencionada tentando tirar proveito da situação enfrentada pelo Rio Grande do Sul para aplicar golpes. Preste atenção:

1) Se receber mensagem no WhatsApp solicitando informações pessoais e financeiras ou qualquer tipo de pagamento em nome da Defesa Civil, não responda;

2) Não clique em links enviados por números desconhecidos ou suspeitos;

3) Nunca compartilhe senhas, códigos de verificação ou outras informações pessoais via WhatsApp;

4) Alerte seus amigos e familiares sobre isso.

cuidado com golpistas: a defesa civil estadual não está pedindo ajuda de custo para a construção de casas no RS. se receber uma mensagem desse tipo, Denuncie à Polícia Civil pelo telefone 181, pelo WhatsApp (51) 98444-0606, na delegacia mais próxima ou no site delegaciaonline.rs.gov.br. É golpe.

Pingente para a reconstrução do RS

Lapidado em cristal murano, o pingente ao lado chama-se Coração Gaúcho. A joia foi criada pelo artesão miniaturista Lucas Dorneles, do grupo Cristais de Gramado, na Serra, para ajudar na reconstrução do Rio Grande do Sul.

A empresa vai repassar 50% do total das vendas da peça para ações solidárias lideradas pelo Instituto Cultural Floresta. Elaborado de forma artesanal com a técnica flamework, que usa maçarico (veja acima), o produto nas cores da bandeira do RS está disponível por R$ 69 no showroom da loja (junto ao pórtico do município) e pode ser encomendado pelo WhatsApp (54) 3286-0100.

- É a nossa contribuição para a retomada do Estado - diz Gustavo Fuchs, CEO do grupo.

INFORME ESPECIAL

quarta-feira, 29 de maio de 2024


Lista de chamada de porta em porta

Com a tragédia da enchente no Rio Grande do Sul, vivemos um descompasso na área de educação. Não existe uma uniformidade. Pela primeira vez na história, experimentamos uma situação caótica, provisória e anfíbia. Cuida-se de cada escola em particular, das condições para que volte a funcionar.

O calendário está fracionado. Há escolas intactas, mas sem quadro de professores, já que todos os profissionais perderam suas casas (a exemplo da EEEM Américo Braga, no bairro Sans Souci, em Eldorado). Há escolas destruídas com professores a salvo. Há escolas ativas em cidades não atingidas.

Não é possível pensar na aplicação de um único regime presencial. O momento é de estancar a hemorragia pouco a pouco nos municípios afetados, inclusive adotando o ensino remoto e online em alguns casos.

Apesar da ansiedade dos pais e natural pressão pela retomada das aulas, pois se trata de um serviço essencial para a restauração da normalidade, exige-se bom senso mais do que paciência. De acordo com levantamento da Secretaria de Educação do RS, são ainda 1.066 escolas estaduais danificadas em 251 municípios, abrangendo 29 Coordenadorias Regionais de Educação.

Corre-se para preservar o ano letivo, sem prescindir de acolhimento e merenda. A retomada vai acontecer, está acontecendo. No início da calamidade, 88 escolas serviram de abrigo aos flagelados, com a transformação das salas em dormitórios. Agora o número caiu para 54.

Os avanços se desdobraram em tempo recorde, tendo em vista o tamanho dos estragos. Do nosso total de 741.831 estudantes, 514.607 retornaram às atividades. Isso representa 69,4%, uma proeza em meio a um ciclone de perdas.

Falta integrar 227.224 alunos (30,6%), dos quais 86.921 ainda não têm data prevista de recomeço, em cidades como Pelotas, Porto Alegre, Rio Grande, Canoas, Nova Santa Rita, Alvorada, Cachoeirinha e Gravataí.

O contexto de improviso diante da destruição revela-se desafiador. Em Roca Sales, professores lecionam no salão da igreja. Nas ilhas, procura-se terreno próximo e seco para montar escolas de emergência. Vem sendo feito cruzamento de contatos com os abrigos para localizar matriculados. Criou-se um novo sistema de registros, pois grande parte das comunidades ficou sem internet e telefone e isolada pela queda de pontes e obstrução das estradas.

Tenho acompanhado o trabalho da Secretaria de Educação na gestão da crise e sua admirável engenharia de reconstrução e reagrupamento. É igualmente louvável o empenho dos professores como intermediários voluntários das suas turmas, buscando notícias, embarcando em botes, cruzando rios, conversando com familiares, fazendo a lista de chamada de porta em porta.

Nunca houve tanta felicidade ao se ouvir "presente" de um aluno, é aquele estar vivo e bem que renova a coragem, que recompensa o sacrifício.

CARPINEJAR 

29 DE MAIO DE 2024
OPINIÃO DA RBS

AGIR LOCAL

Em participação ontem no Atualidade, da Rádio Gaúcha, o climatologista brasileiro Carlos Nobre, referência internacional em estudos sobre aquecimento global, reforçou o alerta sobre as consequências sombrias para a humanidade causadas pelas mudanças climáticas. Os efeitos de um planeta febril não são uma conjectura sobre como será o futuro. Seus reflexos estão presentes neste momento, na forma de uma devastação sem precedentes no Rio Grande do Sul, provavelmente a tragédia climática mais destruidora da história do país. Os principais trechos da entrevista estão na página 13 desta edição de Zero Hora.

A ameaça já palpável do aquecimento global, lembrou Nobre, reside em eventos extremos com maior frequência e potencialmente cada vez mais violentos. Grosso modo, é como se as chuvaradas que atingiram o Estado na virada de abril para maio não fossem acontecimentos raros registrados a cada século, mas sim a cada década. Não se deve esquecer ainda que, sob um El Niño potente, os gaúchos, no intervalo de um ano, passaram por quatro episódios de chuvas torrenciais e duradouras que arrasaram cidades e deixaram um saldo funesto de quase 250 vítimas fatais.

Diante da comunidade global, está o desafio de diminuir as emissões de gases causadores do efeito estufa para frear a tendência de aquecimento do planeta até patamares que tornariam a Terra um ambiente bastante hostil. As perspectivas atuais, no entanto, não são animadoras. Cresce o ceticismo quanto à capacidade das lideranças mundiais chegarem a um consenso capaz de manter o aumento da temperatura abaixo de 2ºC em relação ao período pré-industrial, como prevê o Acordo de Paris, firmado em 2015. Assim, resta às regiões atingidas, como o Rio Grande do Sul, aprender as lições e colocar em prática medidas que aumentem a resistência aos eventos extremos e mitiguem seus efeitos. Vencer o imobilismo e agir localmente salva vidas e evita perdas materiais.

Doutor em meteorologia pelo afamado Massachusetts Institute of Technology (MIT), um dos principais centros produtores de ciência e tecnologia do mundo, Nobre cita ações com diferentes graus de custos e de complexidade para diminuir estragos causados por episódios do gênero. Entre elas, recompor a mata ciliar nas principais bacias hidrográficas e proteger florestas em áreas de encostas como forma de abrandar enchentes e a força de enxurradas. São medidas que, por combaterem a erosão do solo, também colaboram para reduzir o assoreamento dos rios, outro fator que influencia as cheias.

Conscientização e cumprimento da legislação vigente, como o Código Florestal, já seriam suficientes para avançar bastante neste aspecto. São iniciativas que também poderiam amenizar estiagens, outro fenômeno recorrente no Rio Grande do Sul que pode voltar nos próximos meses com o retorno do La Niña.

Ainda em relação ao excesso de chuvas, há ações listadas por Nobre que exigirão investimentos bilionários, como em infraestrutura preparada para resistir à força da correnteza, transferência de áreas povoadas de zonas de risco e preparação urbana para melhor armazenar e absorver o excesso de água advindo de enchentes, com o emprego de conceitos das cidades-esponja. O custo, sem dúvida, é alto. A outra opção é pagar para ver. Ocorre que o Rio Grande do Sul, da pior forma possível, é a prova de que negar os sinais das mudanças climáticas é o caminho para a tragédia.

Resta às regiões atingidas, como o RS, aprender as lições e colocar em prática medidas que aumentem a resistência aos eventos extremos

OPINIÃO DA RBS

Trinta dias de um pesadelo infinito para os gaúchos

A enchente de 2024 começou em dias diferentes para cada região do Rio Grande do Sul, mas foi no dia 29 de abril que começou a se delinear a catástrofe. Foi nesse dia que Sinimbu ficou isolada e devastada, um pedaço da RS-287 caiu e deixou Candelária sem acesso a outras cidades. São 30 dias de um pesadelo sem fim para quem perdeu parentes, amigos, casa, carro, móveis e animais de estimação.

No dia seguinte, seria a vez de o Vale do Taquari, que ainda não tinha se recuperado da enchente de setembro de 2023, reviver o pesadelo, agora com o rio mais violento. De novo, Muçum, Roca Sales, Encantado e Arroio do Meio viram a água fazer o mesmo trajeto de setembro e ir além. Em Lajeado, a ponte da BR-386 ficou encoberta e o rio seguiu seu curso arrombando as margens e causando mais mortes e mais estragos nos municípios da sua rota. Foi nesse dia que a comunidade de Passo de Estrela (foto), em Cruzeiro do Sul, conheceu o terror. O pequeno município erguido às margens do Taquari contabiliza 15 mortos e 12 desaparecidos, além de centenas de desalojadas.

Quando as águas dos rios Taquari, Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí se juntaram no Guaíba já era 3 de maio. Naquela manhã, com uma das comportas do Muro da Mauá avariada e bombas que não funcionavam, a água invadiu o Centro, reprisando cenas de 1941. Ainda hoje há milhares de famílias fora de casa na Região Metropolitana e incerteza sobre o futuro.

Um mês depois, as promessas de ajuda emergencial dos governos começaram a ser cumpridas, mas o grande desafio ainda está por vir: o da reconstrução. Serão necessárias milhares de casas para abrigar quem perdeu a moradia. Estradas seguem interrompidas porque pontes foram levadas pela enchente. Empresas estão paradas porque foram alagadas e ainda não receberam os prometidos financiamentos com juro baixo. O vaivém de ministros é incessante e a promessa é que não faltará dinheiro. Que assim seja.

Com a volta dos voluntários à rotina, o governo gaúcho decidiu contratar os Correios para cuidar da logística das doações. Os Correios, que já vinham trabalhando gratuitamente no transporte de donativos, agora serão pagos para receber os caminhões, separar o material e fazer a distribuição para as defesas civis dos municípios afetados.

Um dos destinos turísticos mais procurados do Brasil, a cidade de Bento Gonçalves lançou um movimento batizado de Viagem Solidária. A ideia é estimular os turistas a viajarem sem culpa neste período de crise no Rio Grande do Sul.

O cancelamento de viagens agendadas e a desistência de pessoas que se programavam para visitar Bento e a Serra Gaúcha são ameaça a diversos empreendimentos e, especialmente, a milhares de empregos na região.

Foi para reverter essa situação e mostrar às pessoas que os locais turísticos e estabelecimentos como hotéis e restaurantes não foram atingidos pelas águas e seguem abertos que o prefeito Diogo Siqueira criou o movimento. A intenção é mostrar que há opções para chegar aos pontos turísticos da Serra, como as vinícolas de Bento.

ROSANE DE OLIVEIRA 

29 DE MAIO DE 2024
MARIO CORSO

Um amor que a água levou

Querida chuva

Eu te amava. Tu sabias que eu te esperava com prazer. Apreciava teu aroma quando o vento te anunciava. Depois da despedida, saboreava o hálito verde da terra, agradecendo-te a água recebida. Tu eras generosa.

Gostava do teu barulho dedilhando as telhas, a melhor música para dormir. Ouvia-se uma sinfonia de pingos, era um som na pedra, outro no balde, outro no zinco. Eras uma vassoura do pó do mundo, lavavas as calçadas diligente, fazias as folhas brilharem outra vez. Tua atmosfera de frescor deixava o ar agradável, limpo, melhor pra respirar.

Comentei contigo que algum recôndito pedaço da minha alma é de planta. Ficava saciado com tua umidade mágica. Um que outro não gostava de ti. Diziam que estragavas festas no jardim, não deixavas a roupa secar, fazias barro, atrapalhavas o trânsito, resfriavas os velhinhos, mas eu sempre estive do teu lado.

Eu tive a sorte de ter um bom teto, sem furos, mas até as goteiras, quando apareciam, acompanhavam teu charme. Eram um pouquinho de ti dentro de casa.

Tu eras vida, felicidade, um convite para molhar-se. Nunca decidi se o melhor era jogar futebol na lama, ou andar de bicicleta contigo, aproveitando para levantar a água das poças que criavas. Tudo em ti era benfazejo e renovador.

Quando me visitavas no inverno, estava trancado em casa. Eras o prenúncio de bolinhos - que levam teu nome - e conversas ao redor do fogão a lenha.

Por esses dias, tudo mudou. O amor que sentia por ti transformou-se em medo. Não te reconheço. O que foi feito da tua suavidade? Hoje, quando o céu escurece, fico inquieto. Perdi a alegria de te receber. É triste constatar que agora só me trazes dor.

Como sempre fomos sinceros, posso te dizer: perdeste a educação que tinhas. Agora, chegas de visita e não sabes a hora de partir. Perdeste também a mão, a ponderação, só vens como chuva grossa, excessiva, malvada.

Tu tanto choves, que agora chove tristeza dentro mim e dos meus. Antes tu acariciavas nosso rosto com pingos, hoje nos açoitas, derrubas, carregas. Tuas águas levaram as boas memórias de quando estivemos juntos. Em dias de tantas perdas, foi difícil despedir-me do amor que tinha por ti.

MÁRIO CORSO


29 DE MAIO DE 2024
INFORME ESPECIAL

Rose, a leitoa salva da enchente que encanta o abrigo

Ela tem 28 dias e foi salva por um triz. Ou melhor: pela compaixão de uma menina de três anos. A porquinha Rose (nas fotos) - que virou xodó no abrigo do Centro Estadual de Treinamento Esportivo (Cete), na Capital - é mais um símbolo de resistência no Rio Grande do Sul.

Quando a água do Guaíba subiu na Ilha Grande dos Marinheiros, a recicladora Andressa Moraes Ramos (ao lado), 25 anos, só conseguiu pensar em salvar os três filhos (Isadora, 3 anos, Ângelo, 8, e Augusto, 10).

Na correria para sair de casa, ela percebeu que a menina levava um pequeno volume sob a blusa: era a filhote suína, do tamanho da palma da mão de um adulto. Andressa olhou para Isadora incrédula.

- É o meu bebê, mamãe - disse a pequena, decidida.

Andressa, Isadora, Ângelo, Augusto e Rose chegaram ao Cete em 3 de maio. Ali, todos receberam cuidados, inclusive a mascote (com direito a veterinária e leite na mamadeira). Desde então, Rose dorme aos pés de Isadora.

Estive lá e vi de perto todo o cuidado pelo bichinho, que lembra o protagonista do filme Babe, O Porquinho Atrapalhado. Fiz carinho na cabeça de Rose e, conversando com Andressa, descobri que a leitoa é a única sobrevivente da ninhada. O quintal (onde ficavam os bichos) e a casa da família ficaram submersos.

Andressa perdeu tudo, mas segue firme. Ela diz que vai reconstruir tudo. E Rose?

- Vai morrer bem velhinha do meu lado - garante a recicladora.

Como ajudar

Se você quiser ajudar Rose e a família, o pix é (51) 98132-9563. Apoie também o abrigo do Cete. Doações na Rua Gonçalves Dias, 700, Menino Deus, na Capital.

Um abraço nas vítimas da catástrofe

A arte é generosa - e imprescindível, especialmente em tempos de crise. Os artistas precisam de suporte na tragédia climática, mas também têm doado seu talento para ajudar quem está na pior. É o caso de Ricardo Pirecco.

Ilustrador e designer gráfico em Porto Alegre, Pirecco pôs à venda uma obra com significado especial, chamada Abraço (ao lado), para doar 100% da renda a vítimas da catástrofe no RS.

Com a parceria do ateliê Versus, encarregado das impressões, o autor esperava encontrar compradores para 30 gravuras, a R$ 100 cada. Graças a uma rede de apoio, o resultado surpreendeu.

- Em uma hora, as 30 cópias estavam vendidas. No fim, chegamos a 250 (o equivalente a R$ 25 mil) e vamos além - diz o artista, que repassa os valores a organizações e pessoas na linha de frente da catástrofe.

Para seguir ajudando, Pirecco prepara, agora, leilões beneficentes. Para acompanhar os detalhes, siga o designer no Instagram (@ricardo_pirecco).

JULIANA BUBLITZ

terça-feira, 28 de maio de 2024

O que é um Exaflop?
Um exaflop é uma medida de desempenho para um supercomputador que pode calcular pelo menos um quintilhão de operações de ponto flutuante por segundo. 
Os computadores estão analisando mais números do que nunca para resolver os problemas mais complexos da atualidade: como curar doenças como a COVID-19 e o câncer, mitigar as mudanças climáticas e muito mais.  Esses e outros grandes desafios levaram a computação à era da exaescala de hoje, quando o melhor desempenho é frequentemente medido em exaflops.

Então, o que é um Exaflop?

Um exaflop é uma medida de desempenho para um supercomputador que pode calcular pelo menos 1018 ou um quintilhão de operações de ponto flutuante por segundo.

Em exaflop, o prefixo “exa” significa um quintilhão, que é um bilhão bilhão, ou um seguido por 18 zeros. Da mesma forma, um exabyte é um subsistema de memória com um quintilhão de bytes de dados.

O “flop” em exaflop é uma abreviação para operações de ponto flutuante. A taxa na qual um sistema executa um flop em segundos é medida em exaflop/s.

O ponto flutuante refere-se a cálculos feitos em que todos os números são expressos com pontos decimais.

1.000 Petaflops = um Exaflop

O prefixo “peta” significa 1015, ou um com 15 zeros atrás. Então, um exaflop é mil petaflops.

The exaflop in historical context

Para entendermos como o cálculo de exaflop é complexo, imagine um bilhão de pessoas, cada uma segurando um bilhão de calculadoras. (Claramente, elas têm as mãos grandes!)

Se todas apertassem o mesmo sinal ao mesmo tempo, executariam um exaflop.

A Universidade de Indiana, lar do Big Red 200 e de vários outros supercomputadores, explica desta forma: para combinar o que um computador exaflop pode fazer em apenas um segundo, você teria que fazer um cálculo a cada segundo por 31.688.765.000 anos.

Uma Breve História do Exaflop

Durante a maior parte da história da supercomputação, um flop foi um flop, uma realidade que está se transformando à medida que as cargas de trabalho incorporam a AI.

As pessoas usaram números expressos no mais alto de vários formatos de precisão, chamados de precisão dupla, conforme definido pelo Padrão IEEE para Aritmética de Pontos Flutuantes. O nome “precisão dupla”, ou FP64, vem do fato de cada número em um cálculo exigir 64 bits, pedaços de dados expressos como zero ou um. Em contrapartida, a precisão única usa 32 bits.

A precisão dupla usa esses 64 bits para garantir que cada número seja preciso em uma pequena fração. É como dizer 1,0001 + 1,0001 = 2,0002, em vez de 1 + 1 = 2.

O formato combina muito bem com a maioria das cargas de trabalho da época: simulações de tudo, de átomos a aviões, que precisam garantir que seus resultados cheguem próximos ao que representam no mundo real.

Então, era natural que o benchmark LINPACK, também conhecido como HPL, que mede o desempenho na matemática FP64 se tornasse a medida padrão em 1993, quando a lista TOP500 dos supercomputadores mais poderosos do mundo foi publicada.

O Big Bang da AI

Há uma década, o setor de computação ouviu o que o CEO da NVIDIA, Jensen Huang, descreve como o big bang da AI.

Essa nova e potente forma de computação começou a mostrar resultados significativos em aplicações científicas e empresariais. Além disso, ela aproveita alguns métodos matemáticos muito diferentes.

Deep learning não se trata de simular objetos do mundo real, mas sim de examinar montanhas de dados para encontrar padrões que possibilitem novos insights.

Sua matemática exige alta taxa de processamento. Por isso, fazer muitos, muitos cálculos com números simplificados (como 1,01 em vez de 1,0001) é muito melhor do que fazer menos cálculos com os números mais complexos.

É por isso que a AI usa formatos de precisão mais baixa, como FP32, FP16 e FP8. Seus números de 32, 16 e 8 bits permitem que os usuários façam mais cálculos mais rapidamente.

A Precisão Mista Evolui

Para AI, usar números de 64 bits seria como usar todas as suas roupas de uma vez ao sair no fim de semana.

Encontrar a técnica ideal de precisão mais baixa para AI é uma área ativa de pesquisa.

Por exemplo, a primeira GPU NVIDIA Tensor Core, a Volta, usou precisão mista. Executou a multiplicação de matrizes em FP16 e, em seguida, acumulou os resultados em FP32 para obter maior precisão.

Hopper Acelera com FP8

Mais recentemente, a arquitetura NVIDIA Hopper estreou com um método de precisão mais baixa para treinamento de AI que é ainda mais rápido. O Engine Transformer da Hopper analisa automaticamente uma carga de trabalho, adota FP8 sempre que possível e acumula resultados em FP32.

Quando se trata da tarefa de inferência com menos uso intensivo de computação, executar modelos de AI em produção, grandes frameworks, como TensorFlow e PyTorch, são compatíveis com números de inteiros de 8 bits para obter desempenho rápido. Isso é porque eles não precisam de pontos decimais para fazer seu trabalho.

A boa notícia é que as GPUs NVIDIA são compatíveis com todos os formatos de precisão (acima), para que os usuários possam acelerar todas as cargas de trabalho da maneira ideal.

No ano passado, o comitê do IEEE P3109 começou a trabalhar em um padrão do setor para formatos de precisão usados em machine learning. Esse trabalho pode levar mais um ano ou dois.