A mulher que não chorou no enterro
Era verdade: a viúva não derramava lágrima. Estava longe dali... e então, de algum lugar onde ela estava e que ninguém via, ela sorriu. A viúva apertou a mão de cada um, recebeu o abraço dos mais íntimos e não saiu do lado do caixão. Estava tranquila e conformada
Estavam casados há 31 anos. Então ele morreu de um ataque cardíaco fulminante. Num minuto estava sentado no sofá vendo o episódio de uma série, no outro estava com a cabeça jogada para trás, o controle remoto ainda na mão, já sem serventia. Sua vida saíra do ar.
As providências para os atos fúnebres foram tomadas pelos filhos. À viúva, coube escolher a roupa do morto e a sua própria, para receber as condolências. E lá se foram para a capela do cemitério cumprir o seu papel.
Chegaram os primos. Alguns ex-colegas do defunto. Os amigos e vizinhos do casal. A viúva apertou a mão de cada um, recebeu o abraço dos mais íntimos e não saiu do lado do caixão. Estava tranquila e conformada. Até que uma mulher, não encontrando nada melhor para dizer, comentou: ela não chorou até agora.
Esta frase caiu dentro do ouvido de outra mulher, que balbuciou: estranho. E virou-se para a mulher que estava à sua direita, como se estivesse brincando de telefone sem fio: ela não chorou até agora.
Outra mulher, que escutou tudo, pois havia silêncio suficiente para tal, concluiu: deve ter chorado quando encontrou o corpo. Outra, se achando entendida no assunto, contribuiu com um veneninho: será?
Na meia-hora seguinte, todas as mulheres comentavam: ela não chora. Vejam os olhos: secos. Vejam a gola: impecável. Por que ela não chora? Alguns homens já perguntavam para suas esposas: você vai chorar, não vai? Certamente que vou, amor. Pois se estou chorando até por este aí que mal conheço.
Chegou o irmão mais moço do morto, atrasado: tudo correndo bem? Em tese, mas ela não chora – eles se amavam mesmo? Até quarta passada se amavam, respondeu o cunhado, já em dúvida. Ela não chora, cochichavam todos. Ao menos não sorri, se meteu o padre.
Era verdade: a viúva não derramava lágrima. Estava longe dali, recordando a primeira viagem juntos, de carona para Tiradentes, em como ele embebia o pão no azeite, as bananas que aplacavam a fome em dias de pouca fartura, o dia em que ela foi conhecer a sogra e derramou vinho tinto sobre seu vestido, as milhares de noites em que o sexo foi imoderado e devastador, a vez em que perderam a chave de casa e dormiram no carro, os shows de samba a que assistiram com os pés em festa, os trechos de livros que ele lia em voz alta para ela e o dia em que ela contou para ele que o cisto na axila era benigno e de como houve tão pouco pranto nestas duas vidas que se manteriam de alguma forma envelopadas, e então, de algum lugar onde ela estava e que ninguém via, ela sorriu, e o sorriso infernizou a capela, assombrou os olhos dos outros e diminuiu a fé do padre.
O luto de todos ficou ofendido. A viúva não chorava, mas sentia muito, como se diz nessas horas.
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