quinta-feira, 3 de janeiro de 2008


ASQUALE CIPRO NETO

Gato matreiro, sensual, incendiário

Em poesia, "tudo-nada cabe", diz Gil em "Metáfora" ("Ao poeta cabe fazer com que na lata venha a caber o incabível")

"CRESCI NATURALMENTE, como crescem as magnólias e os gatos", diz Machado em "O Menino É Pai do Homem", capítulo de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", obra-prima do Bruxo do Cosme Velho.

Decerto é desnecessário dizer que, no excerto machadiano, "gatos" quer dizer "gatos" mesmo, ou seja, trata-se dos felídeos.

Até aí, nenhuma novidade. Pois bem. Ontem, a primeira página do UOL estampava uma manchete em que se afirmava que um "gato" pode ter sido o causador do incêndio na cadeia de Rio Piracicaba (MG).

Outra manchete informava que, para a genial e encantadora jogadora de futebol Marta, o jogador português Cristiano Ronaldo é um "gato".

Nos dois casos, o pessoal do site teve o cuidado de colocar a palavra "gato" entre aspas, o que, para muita gente (por "gente" entenda-se tanto "leitores" quanto "redatores"), não faz nenhuma diferença.

No segundo caso (o do conceito de Marta sobre C. Ronaldo), vá lá que a falta das aspas não implicaria dificuldade para a compreensão, mas no primeiro...

Santo Deus, uma coisa é afirmar que um gato pode ter causado o incêndio; outra é afirmar que o tal incêndio pode ter sido causado por um "gato". O nobre leitor já percebeu aonde quero chegar, certo?

Os sinais de pontuação não são enfeites, lenteloujas (ou lantejoulas, tanto faz), miçangas etc. Têm e cumprem seu papel, muitas vezes bem definido.

No caso das aspas, um dos seus papéis é realçar o sentido figurado com que se empregou determinada palavra ou expressão.

Se um matreiro felídeo (isto é, um gato, sem aspas, como o é o gordo, guloso e preguiçoso Garfield, por exemplo) perambula pela fiação de determinado lugar e causa um curto-circuito, a culpa é do gato.

Se humanos desastrados fazem ligações elétricas clandestinas e isso causa curtos-circuitos, a culpa é do "gato". Na verdade, é do homem (ou será do "rato", com aspas?).

Gato, rato, bicho-homem, homem-bicho -é quase tudo uma coisa só, neste triste mundo de meu Deus.

Na memorável "Ode aos Ratos" (música de Edu Lobo, letra de Chico Buarque), encontram-se estes finos versos, que encerram a obra-prima: "Saqueador da metrópole / Tenaz roedor / De toda esperança / Estuporador da ilusão / Ó meu semelhante / Filho de Deus, meu irmão".

Em seu belíssimo disco "Carioca", Chico emenda "Ode aos Ratos" e "Embolada" (também composta em parceria com Edu Lobo), que assim começa: "Rato / Rato que rói a roupa / Que rói a rapa do rei do morro...".

Compreendidas as metáforas (e, no fundo, a alegoria), fica difícil saber se esse rato é um rato ou um "rato".

Mas isso é poesia, e em poesia "tudo-nada cabe", como dizia Gilberto Gil em sua genial "Metáfora" ("Na lata do poeta tudo-nada cabe / Pois ao poeta cabe fazer / Com que na lata venha a caber / O incabível").

Definir o sentido da linguagem poética pode resultar em empobrecimento. Vale o que diz o mesmo Gil na mesma "Metáfora": "(...) não se meta a exigir do poeta / que determine o conteúdo em sua lata / (...)

Deixe a meta do poeta, não discuta / Deixe a sua meta fora da disputa / Meta dentro e fora, lata absoluta / Deixe-a simplesmente metáfora".

Em se tratando de linguagem jornalística, é bom (re)lembrar, a clareza é mais do que necessária. É isso.

inculta@uol.com.br

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