sábado, 16 de março de 2024


16 DE MARÇO DE 2024
MARTHA MEDEIROS

Em defesa da literatura

Tirem as crianças da sala, vou reproduzir um trecho do livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório. "O Tio Zé Carlos era da Polícia Civil e fazia questão que todos soubessem disso, pois, sempre que chegava, ele tirava a arma da cintura e a colocava em cima da estante e dizia: crianças, não mexam nisso, entenderam? (...) Sua avó tinha grande orgulho. Era sem dúvida o filho preferido. Zé Carlos se gabava de ter matado um vagabundo, como ele mesmo dizia, que tentou assaltá-lo certa vez. Mesmo que a investigação do caso tivesse apontado indícios de que não houve assalto e que seu tio estava, na verdade, envolvido com tráfico de armas e drogas,..."

Nenhuma escola chiou. Ninguém achou essa passagem inadequada para estudantes do Ensino Médio, mesmo contendo arrogância, mentira, incitação à violência.

E ninguém tem que chiar mesmo. Literatura não é manual de etiqueta. Não é passatempo para donzelas. O livro é a ponte entre a inocência e a vida. Uma forma de abrir a janela de casa para enxergar o mundo e ter as emoções despertadas. E elas são vastas, vão da alegria ao medo. A formação de um ser humano mentalmente saudável começa na família, recebendo amor e bons exemplos, e continua no acesso ao que existe lá fora, no estímulo à imaginação e ao conhecimento. 

Adolescentes manejam celulares cujo conteúdo passa longe da catequese. Adolescentes escutam boa e péssima música, com letras vulgares e machistas. Adolescentes convivem com outros adolescentes agressivos e desajustados. É uma sorte quando têm a chance de se familiarizar com o terror, as injustiças, as diferenças e a excitação através de uma narrativa literária.

Eu devia ter uns 14 anos quando li O Cortiço, de Aluísio Azevedo, que foi indicado pela escola em que eu estudava. Havia sexo no livro. Nos de Jorge Amado, sobra sexo. Assim como na literatura de todos os grandes autores. A descrição de um simples beijo pode ser mais perturbadora do que a descrição explícita de um coito. Depende de quem são os personagens, do contexto da história, da época em que ela ocorre. O leitor ativo tem senso crítico: assimila a inteireza da obra, em vez de apegar-se apenas ao recorte de uma cena.

O bom professor é aquele que também lê com frequência e expandiu sua consciência, eliminando preconceitos. Tanto quanto os pais de seus alunos, ele sabe que a vida é bela até certa idade, depois a gente descobre que existe violência, corrupção, fanatismo, desigualdade, racismo, prostituição, drogas e tudo mais que acinzenta a versão cor-de-rosa da infância. O sexo entra nesta lista em forma de abuso, pedofilia, estupro. Tudo matéria da literatura, na qual um adolescente pode e deve ser iniciado, sem que isso o conduza a ter uma ficha criminal.

Nenhum problema com histórias de amor, poemas idílicos, romances de aventura, textos contendo nenhum palavrão. Salve, salve. Só não sejamos hipócritas.

MARTHA MEDEIROS

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