O filé que se desmancha com uma colher
Não sei se você já viu como funciona um truque de mágica, mas é uma decepção. Algo que deslumbrou você por um lance de prestidigitação, quando compreendido, quando assimilado, no passo a passo didático dos movimentos, perde a graça. Torna-se até banal, sem mais motivar a sua atenção e curiosidade.
Você, ao fim da explicação, apenas pergunta: era só isso? Como não percebi antes?
O ilusionismo não pode ser desmascarado. Se você dissecar a dinâmica daquela carta que você pensa e o mágico descobre exatamente qual é no baralho dos mais distintos naipes, daquela flor que está no chapéu e de repente aparece na sua orelha, só se sentirá profundamente enganado.
É ciência por trás, não um gesto sobrenatural ou telepático como jurava no início. Eu experimentei frustração semelhante com o meu pai. Ele se vangloriava de seu filé macio, acebolado, cortado com a colher. Eu ficava espantado: a carne se mostrava tão macia, tão indefesa, tão suculenta, que não dependia de faca.
Uma simples e apática colher bastava para dividi-la da vasilha para o nosso prato. Eu o considerava o maior gourmet, o maior chef da casa, da redondeza, do bairro. Quando ele servia o almoço no sábado, eu me voluntariava para aprofundar a colher, para testar a veracidade de seu feitiço.
A colher de sopa, de xarope, tornava-se uma lâmina aguda e letal sem precedentes. Meu pai desafiava a sua parte côncava, imprópria para o ato. Ele justificava a proeza pela qualidade do açougue, elogiava a si mesmo pela escolha pertinente do pedaço, destacava a importância de selar o filé, de modo nenhum fincar o garfo nele enquanto era sapecado na manteiga derretida da frigideira.
Eu ouvia sua receita com indisfarçável orgulho, como se fosse uma história de valentia, de faroeste, em que ele petrificava seus inimigos com o olhar de aço.
Um dia, ao surgir de inopino na cozinha, eu observei o meu pai afiando pacientemente a colher na pedra de amolar, no espaço exclusivo dos facões. Ele tentou esconder o que fazia, disfarçar com o corpo, porém eu entendi o suficiente para jamais voltar a confiar na brandura do seu bife.
A partir daquele momento, eu passei a amar meu pai como um homem, com seus defeitos e limitações. Ele deixou de ser meu super-herói para ser falível e real, despido dos fenômenos extraordinários.
Nunca contei o que testemunhei para os meus três irmãos. Não quis estragar os efeitos especiais do banquete. Meu ceticismo não foi contagioso. Dei uma colher de chá para o pai. Afinal, todo amor tem seus segredos.
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