29 DE MARÇO DE 2024
CARPINEJAR
Moradores de rua
Raras eram as residências com campainha. Batiam-se palmas no portão para chamar os residentes. Aplaudíamos os nossos afetos. Os portões baixos e destrancados permitiam que a gurizada do bairro matasse a sede nas torneiras do jardim. Se o espaço não contava com a vigília de cachorro bravo, entrávamos sem pedir licença. Também nos servíamos à vontade das frutas das árvores em terreno alheio: bergamoteiras, ameixeiras, mudas de carambola. Tudo o que estava no pé poderia ser colhido, na base do buffet livre.
Eu não temia moradores de rua. Pois me sentia igual, semelhante. Vivia praticamente nas calçadas, migrando de um pátio a outro. A mãe gritava da varanda que a comida estava servida. A voz era uma corda que encerrava as nossas fantasias e aventuras e nos trazia de volta para a realidade.
A noite não principiava com o escuro, com o surgimento das estrelas no céu, mas com a decisão materna. Tomar banho significava dormir. O suor ficava lá trás, na bola de couro, no pião e no carrinho de madeira.
Naquele tempo, conhecíamos um por um dos moradores de rua. Assim como tinha o médico de família, tinha o mendigo de família. Assim como tinha o carteiro, tinha o mendigo do bairro. Assim como tinha o entregador de jornal, tinha o mendigo que aparecia sempre na mesma hora, pedindo pão velho.
Não vinha uma vez e sumia. Vinha sempre, formávamos a sua clientela fixa. Não atendíamos com raiva e pressa. Muito menos desaforávamos sua aparição. Mendigos não incomodavam. Acredito que alimentávamos uma admiração secreta pelo seu despojamento viajante, uma curiosidade pela sua história pregressa. Nunca foram confundidos com ladrões e observadores indiscretos dos pertences de dentro.
Nosso mendigo se chamava Alfredo. Usava chapéu de feltro e fumava cigarro de palha. Jamais reivindicava dinheiro, trocado, moedas. Solicitava pão velho. O que nunca ganhava. Talvez terminasse desapontado, porque acabava recebendo cacetinho quentinho, recém-comprado do armazém. Com a ajuda de um copo de leite, mastigava o pãozinho entre as mãos como uma gaita, com a manteiga ampliando a extensão brilhante dos lábios.
Falava pouco, pouquíssimo, um cumprimento ao entrar, um agradecimento ao sair. A mãe o conduzia para a antessala, não aceitava que ficasse no sereno. E se pegasse resfriado? Nosso tradicional visitante chegava no entardecer. Esquisito que já o aguardávamos nas janelas. Tal qual uma banda. Ele surgia de repente, dobrando uma esquina, como um anjo dobra as asas para não ser reconhecido.
Ele passou a ser um segundo pai, meu pai da década anterior. Pois doávamos para ele as roupas antigas do meu pai. Tornou-se uma cópia de chave paterna: vestia o pulôver, a camisa de gola, a calça. Eu desfrutava da chance de ver meu pai duas vezes ao dia.
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