16 DE MARÇO DE 2024
LEANDRO KARNAL
Dona Créssida zelava pela moral da biblioteca escolar. Nesse colégio, as crianças e os jovens deveriam ler apenas coisas sem vulgaridades. A zelosa senhora jamais deixava de ler o que chegava e fazia o papel de real mesa censória: barrava obras que destruiriam a pureza dos alunos.
Enviaram a coleção completa de José Saramago. Na capa, a informação: Prêmio Nobel de Literatura. Pensava a bibliotecária: "E daí? Sou eu quem vou julgar este autor!". Começou a ler a História do Cerco de Lisboa. De repente, os olhos atravessaram os óculos e pousaram-se sobre o trecho: "E súbito Raimundo Silva atirou a roupa para trás, ali estava Maria Sara, os seios, o ventre, o púbis alto, as coxas longas, e ele, sem vergonha, esquecido de medos, mostrando-se à luz, ainda que tão pouca, apenas o lençol branco brilhava como se inundasse o luar". Púbis alto? Créssida fechou o livro com nojo e um tremor percorreu seu corpo magro: "Prêmio Nobel da bandalheira, só pode ser".
Juntou todos os livros do português e levou-os a uma sala anexa. Só ela tinha a chave daquele lugar. Lá, a censora empilhava tudo aquilo que fosse indecente e ofensivo. Tinha medo de jogar fora. Refletia: "Foram doações. Alguém pode reclamar". Seu desejo era de poder queimar os livros no pátio, mas essas cenografias estavam ultrapassadas. Melhor o "quarto do olvido", como ela chamou seu depósito de indecências.
Havia lido sobre a importância do autor Júlio Ribeiro. "Um mineiro e membro da Academia Brasileira de Letras deve ser um homem decente." Tomou da estante o romance A Carne; foi crescendo o incômodo. De repente, chegou a um trecho culminante do Naturalismo: "Lenita ofegava em estremeções de prazer, mas de prazer incompleto, falho, torturante. Abraçando o fantasma de sua alucinação, ela revolvia-se como uma besta-fera no ardor do cio. A tonicidade nervosa, o erotismo, o orgasmo, manifestava-se em tudo, no palpitar dos lábios túmidos, nos bicos dos seios cupidamente retesados. Em uma convulsão desmaiou".
Dona Créssida imitou Lenita e teve um espasmo. Bicos dos seios? Cio? Estremeções de prazer? Ela atirou a obra longe, com nojo extremo. Depois, com um lenço, pegou o livro de forma que suas mãos não tocassem a obra asquerosa e levou ao exílio do quarto anexo. O autor dedicava a obra ímpia a Émile Zola? "Devem ser da mesma laia" - concluiu a casta Créssida. Tomou todos os volumes do autor francês e despejou-os na zona de silêncio. "Aqui nunca irão perverter gente decente", vociferou a zelosa leitora.
Um a um, os autores foram sendo transferidos: Jorge Amado, Eça de Queirós e Gustave Flaubert. Decidiu pegar um escritor mais recente, Jeferson Tenório, muito elogiado nos jornais. Estava lendo O Avesso da Pele, quando encontrou palavrões. "É demais! Eles só pensam nisto!". Lá se foi o literato para o quarto escuro. Buscando abrigo em mulheres, sentou-se com uma xícara de chá para ler Hilda Hilst: "Muito mais limpas e decentes do que estes tarados!", ela disse. Engasgou. Cuspiu. Afogueou-se por completo: "Uma velha tarada e pornográfica!". Assim foi seu veredito.
Sua alma precisava de refrigério. Parece que os autores só conseguiam pensar em sem-vergonhices. Pensava nos alunos que supunha imaculados e puros tocando naquelas coisas nojentas. Precisava de paz e tomou uma linda edição da Bíblia: "Aqui terei paz!". Passou a ler o livro sagrado.
Ainda no Gênesis, esbarrou-se nas filhas de Ló deitadas com o próprio pai! Incesto? A ideia era insuportável. Porém... Ela não poderia arremessar aquela obra na parede. Continuou. No primeiro livro do profeta Samuel, leu que Davi corta o prepúcio de 200 filisteus.
Era um presente para agradar ao sogro. Dona Créssida, em imaginação, viu a cena do corte, um a um. Por fim, o saco com prepúcios sendo aberto na frente do rei Saul. A bibliotecária não conseguiu superar as narrativas dos corrimentos sexuais do capítulo 15, em Levítico. Justamente ela, que jamais fora a um ginecologista. Nem a Bíblia era totalmente pura. Mais zelosa com a fé do que os autores sagrados, ela pegou todos os exemplares de Bíblia e levou-os ao abarrotado quarto secreto. Quase não havia espaço. Tudo ali exalava indecência, fornicação e impurezas. Ela se tremia inteira ao entrar. O sol estava descendo; havia pouca luz. Os livros pareciam ameaçá-la. Tinham um olhar de molestador. As capas e os nomes queriam possuir dona Créssida.
Empilhou as Bíblias recolhidas ao alto e, assustada, desequilibrou-se da pequena escada. Bateu a cabeça no chão; as pilhas foram tombando sobre ela. Era sexta-feira. A escola foi fechada, mas ninguém notou a falta dela. Na segunda, a faxineira viu a luz acesa e foi ao ambiente. Lá estava, morta, Dona Créssida. Sufocada entre pornografias variadas, seu rosto agonizara sob uma grossa edição do Kama Sutra. Sobre seu sexo, alguns exemplares de Lolita. O mal vencera. A pura paladina do bem fora assassinada pela indecência contra a qual lutara tanto. Não houve esperança para ela.
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