sábado, 30 de março de 2024



30 DE MARÇO DE 2024
MARCELO RECH

É o fim do talento?

Por décadas, a cada inovação tecnológica que afetava o campo da comunicação, da cultura ou das artes, eu me mantinha firme. Eram transformações bem-vindas porque facilitariam a produção e a disseminação do conhecimento e fariam sobressair o talento criativo como um atributo que diferenciaria cada vez mais seres humanos e máquinas.

Admito que, pela primeira vez, minha fé está abalada. Quando fui apresentado ao ChatGPT, ainda nos idos de 2022, encantei-me com o potencial da disrupção que se materializava na tela à frente. Mas desconfiei se toda aquela capacidade de redação de textos e de produção de ilustrações não seria uma pá de cal no talento criativo como um fator diferenciador.

Com o avançar da febre da inteligência artificial, a coisa foi ficando mais clara. A máquina não cria do zero. O que os LLMs (sigla para a terrível expressão large language models) fazem é ingerir conhecimento alheio e regurgitá-lo em uma forma nova, muitas vezes sem qualquer traço reconhecível dos conteúdos originais. Embora a OpenAI mantenha sigilo, estima-se que um terço dos conteúdos do ChatGPT tenha sido extraído dos vastos arquivos de veículos jornalísticos, outro terço venha de meios acadêmicos e instituições científicas, e o terço restante, de governos, empresas e demais organizações.

Ou seja, entraram na casa de todo mundo sem pedir licença, levaram os móveis, os tapetes, os quadros e até as plantas. A desfaçatez está produzindo uma batelada de ações milionárias contra os LLMs. O problema central é que nenhuma atividade que use talento criativo, a menos que (Deus nos livre!) seja dependente do Estado, sobrevive se não houver respeito a direitos autorais. 

Estávamos assim quando surgiu na semana passada o Suno, um serviço capaz de produzir uma música em segundos seguindo duas ou três instruções. Você pode tirar do nada uma canção romântica para sua namorada, escrevendo a letra ou deixando isso para o Suno, e até fabricar sua própria playlist, que será única. A coisa é assustadoramente eficaz. A máquina parece mesmo compor música com qualidade razoável.

O que resta a nós, humanos? Elevar a barra do talento e desenvolver um estilo próprio, singular, porque ao menos isso a traquitana ainda não consegue replicar. Fiz um teste com o ChatGPT esta semana. Orientei-o a copiar o estilo do David Coimbra na redação de um texto sobre derrotas por pênaltis (sem provocações). "Ah, o futebol. Esse esporte que nos faz vibrar, chorar, e às vezes, nos deixa sem palavras", começou, em uma obviedade de dar dó. Pode parar, Chat. Você vai ter de se esforçar muito ainda para conseguir plagiar o David. Sorte, por enquanto, dos criadores e dos talentosos.

MARCELO RECH

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