quarta-feira, 6 de março de 2024


06 DE MARÇO DE 2024
CARPINEJAR

Um grande livro censurado

Enganos podem ser trágicos. Interpretações fora do contexto podem ser fatais. Diretora da Escola Estadual de Ensino Médio Ernesto Alves de Oliveira pediu a retirada do livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, das salas de aula.

Cerca de 200 exemplares de O Avesso da Pele, que aborda o racismo estrutural, chegaram à escola Ernesto Alves em dezembro de 2023, para serem trabalhados pelas turmas. O livro fazia parte do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), do Ministério da Educação (MEC), que distribui obras didáticas e literárias às escolas públicas, por solicitação das próprias instituições.

A censura partiu da alegação de que o romance apresenta palavras que definem órgãos sexuais e descrevem relações íntimas.

A diretora pinçou pequenos trechos das quase 200 páginas do livro. São momentos isolados e pouco representativos do cerne da trama. Ela ficou horrorizada com o vocabulário de baixo calão, que apenas retrata a linguagem coloquial da vida como ela é, de acordo com as idiossincrasias e faixa etária dos personagens. Não é o autor falando, porém seus personagens.

Existe uma injustiça na presunção da vulgaridade.

Primeiramente, a obra foi eleita por comissão do Ministério da Educação, na gestão de Jair Bolsonaro. Em seguida, cada escola desfrutou de livre-arbítrio para definir os autores aprovados que pretendia adotar no currículo. Ou seja, a escola de Santa Cruz do Sul é que escolheu O Avesso da Pele entre centenas de títulos habilitados. Não consistiu em uma imposição.

Não existe contraindicação para a narrativa. Pelo contrário, O Avesso da Pele tem o reconhecimento do Prêmio Jabuti, a maior premiação literária do país. Já contou com adaptação para o teatro e seus direitos acabaram de ser vendidos para o cinema. Traduzido para 10 idiomas, encontra-se na 13° edição no país. Duzentas mil pessoas compraram um exemplar por espontânea e soberana vontade, devido a gosto pessoal, paixão pela proposta e afinidade com o estilo. O sucesso de crítica e público coloca o romance acima de qualquer suspeita.

Vale destacar que o livro não está sendo direcionado para o Ensino Fundamental, naquilo que poderia ser classificado como "precocidade sexual", mas destinado aos adolescentes do Ensino Médio. Portanto, para jovens que namoram e que necessitam de orientação educacional a respeito da sua sexualidade.

Os termos que causaram repulsa são desconstruções críticas do negro como objeto sexual, maldosamente exposto como superdotado, esvaziado de alma e de personalidade por piadas preconceituosas, numa curiosidade tipificada do racismo. Jeferson combate a forma como o negro é percebido, enfrenta a exploração inadequada e utilitária do seu corpo.

Conheço Jeferson Tenório. Ele me antecedeu como patrono da Feira do Livro de Porto Alegre e me confiou a chave da Praça da Alfândega. Garanto que ele é um dos escritores mais sérios, compenetrados e dedicados da literatura brasileira. É o oposto da escatologia, da pornografia, da safadeza. Trata-se de alguém rigoroso, elegante e refinado. Escreve com a sobriedade de um clássico, privilegiando a transmissão das ideias a partir das suas figuras ficcionais.

Converse com ele por meia hora e se verá deslumbrado pela sua educação, pela sua maneira respeitosa e atenciosa de acolher a todos. Talvez a origem do escândalo seja mais profunda, pelo fato de o protagonista ser um professor negro.

Na história, o professor é assassinado por engano numa abordagem policial em Porto Alegre. Seu filho tenta entender o que aconteceu e quem era o pai. Parece que ele foi assassinado pela segunda vez, agora em Santa Cruz do Sul.

CARPINEJAR

Nenhum comentário: