09 DE JUNHO DE 2020
NÍLSON SOUZA
Recital na quarentena
O burro zurra. E como zurra! Será, sem dúvida, a minha lembrança mais extravagante desta quarentena infindável. Minha e da vizinhança toda. Moramos num recanto pacífico da zona sul da Capital, onde o urbano e o rural ainda convivem. Pois um dos moradores do bairro - o distanciamento social me impede de identificá-lo - colocou o burrinho em confinamento num campo das proximidades. Não sei se o animal se sente sozinho, se passa frio ou se tem vocação para tenor. O fato é que, de quando em quando, às vezes no meio da noite ou até de madrugada, ele solta o seu brado retumbante, ampliado pelo silêncio destes novos e estranhos tempos.
Como se representa a voz do burro em palavras? Alguns dicionários arriscam esta onomatopeia:
- Him-hã, him-hom!
Na realidade, é muito mais do que isso. Ele espicha o seu relincho, muda de tom, soluça e ronca como uma maria-fumaça se aproximando da estação. Na primeira vez, pensei que se tratasse de algum corneteiro desafinado, pois há dois batalhões do Exército nas cercanias. Logo, porém, ficou claro que era um animal. Depois da sétima ou oitava sinfonia muar, resolvi conferir se o bicho estava sendo maltratado. Apesar da proximidade, fui de carro e de máscara, como recomenda o protocolo do momento. O burrico pastava tranquilamente, nem percebeu que eu o observava e o fotografava para mostrar em casa que ele aparenta estar saudável e bem cuidado. Continuo sem saber por que zurra tanto, de noite e de dia.
Desde que li Platero y Yo, admirável relato poético do espanhol Juan Ramón Jiménez, fiquei fã dos burrinhos. Quando soube que seus primos mais humildes e sacrificados, os jegues nordestinos, estavam sendo trocados por motos e abandonados nas ruas, fiquei ainda mais comovido com a sina desses animaizinhos dóceis e resistentes. Nesse contexto, o burro cantor do bairro Serraria até parece privilegiado, mas seus frequentes e repetitivos recitais desafiam a minha compreensão. Solidão? Medo? Inconformidade com o confinamento?
De certa forma, também estamos passando por situação semelhante nestes dias sombrios de saudades, perdas e desatinos. Às vezes, dá mesmo vontade de gritar alto, como faz esse insólito vizinho. Porém, me consolo com a poesia de Jiménez: "No dividí mi vida en días, sino mis días em vidas...".
Vidas, todas as vidas, importam.
NÍLSON SOUZA
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