28 DE MARÇO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL
AS PESTES
Há 2.450 anos, Atenas viveu uma peste horrenda, no segundo ano da guerra com Esparta (431-404 a.C.). Os atenienses estavam na condição oposta de nós brasileiros em 2020, pois tinha em seu líder, Péricles, um aristocrata muito culto, com espírito científico e devoto da causa democrática. A epidemia foi descrita por Tucídides no segundo livro (47-54) de A Guerra do Peloponeso. O próprio historiador sofreu com a peste e a examina com olhos e vocabulários de médico - pois a medicina, como a história, trata de perceber os sintomas para identificar as causas. A peste ensina a compreender o corpo, o mundo e a sociedade.
Naquela peste, desoladoramente, morreram os altruístas que foram prestar assistência e solidariedade, então médicos, ora todos os profissionais de saúde. A peste ceifou também a vida de Péricles, celebrado por Tucídides nos capítulos anteriores (35-46), na Oração Fúnebre, propaganda do esplendor moral da democracia ateniense. O autor caprichou no contraste entre apogeu e queda, pois, com a peste, debilitou-se Atenas e preparou-se o colapso da cidade luz do mundo antigo, ao final do século V a.C., um dos principais pontos de mutação da história. A cidade e o mundo mudam depois da peste.
A descrição de Tucídides é assombrosa: "Corpos moribundos se amontoavam e pessoas semimortas rolavam nas ruas e perto de todas as fontes, em ânsia por água. Os templos nos quais se haviam alojado estavam repletos de cadáveres dos que ali morriam; a desgraça que os atingia era tão avassaladora que as pessoas, não sabendo o que sucederia, tornavam-se indiferentes (a quaisquer leis), sagradas ou profanas. (...) Alguns aproveitavam as piras dos outros (...), jogavam nelas seus próprios mortos e lhes ateavam fogo; outros lançavam os cadáveres que carregavam em alguma pira já acesa e partiam" (II, 52).
A seguir, analisa a dimensão cultural e política: "A peste introduziu pela primeira vez em toda a pólis a plena anomia" (II, 53). A palavra anomia, aqui em seu primeiro uso, diz do abandono de todas as leis e convenções, sociais ou religiosas, e da entrega à urgência vital: "Todos resolveram gozar rapidamente todos os prazeres e deleites, considerando os corpos e as riquezas como efêmeras". A peste revelava o poder fundamental de Eros, sufocado pelas convenções diurnas, soberano quando assomam a noite e a pulsão urgente dos desejos.
Freud complementou essa espantosa visão de Eros em meio à peste com a percepção da força de Thânatos: a morte, ou, como se lê em Mal-estar na Cultura (1929/30), pulsão de morte - o desejo de matar. Compreende-se assim o apelo mórbido de corpos infectados que querem matar, dos necrogovernos e da necropolítica. Não sabem e não conseguem amar, agregar, unir. Com discurso economicista, promovem o desdém à vida e temem, covardes, as mudanças econômicas necessárias e urgentes. Agrava nosso quadro o desamor ao conhecimento científico e à cultura da solidariedade. Mas nós queremos sobreviver, e será contra as duas pestes e com amor, ciência, cultura, resistência e uma política pela vida.
FRANCISCO MARSHALL
Um comentário:
que vc quiz dizer com essa cronica , nessa hora ?
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