domingo, 8 de março de 2020


07 DE MARÇO DE 2020
MÔNICA SALGADO


De olhos bem fechados

Ela

Ela abre os olhos. Lençol desconhecido. Está nua. Mas usa meias. Ele dorme ao lado. Tão gostoso ele. Naquele nanossegundo de recobrada parcial de consciência, duas memórias pipocam como flashes: orgasmos múltiplos e overdose de Merlot. Não necessariamente nesta ordem. Os (poucos, quase inexistentes) flashes de lembranças são intercalados por pontadas na cabeça e ondas de enjoo. Ela já até sabia em qual taça deveria ter parado. Naquela fatídica que separa o "estado cremoso molinho relax" do "estado amnésia alcoólica eu jurei que nunca mais passaria por isso". Às vezes é um gole. Ela adormece de novo.

Ele

Ele abre os olhos. Escaneia o ambiente. Ufa, é seu quarto. Ela ressona a seu lado. Não é um ronco nem um sono de princesa. É um remix sexy porque é real. Tão linda ela. Está nua. Mas usa... meias? Naquele nanossegundo de recobrada parcial da consciência, duas memórias pipocam como flashes: overdose de Merlot e ele constrangido, derrotado pela impossibilidade de uma ereção digna dela. Nesta ordem. Os (poucos, mas suficientes) flashes de lembranças são intercalados por pontadas de ansiedade e ondas de vergonha. Ele já sabia em qual taça deveria ter parado. Naquela fatídica que separa o "estado deliciosamente sem filtro" do "estado olha eu juro que estou com muito tesão em você não sei o que está acontecendo". Às vezes é um gole. Ele adormece de novo.

Ela

Meu Deus, que horas são? O simples ato de fazer uma sinapse faz a cabeça latejar. O cheiro morno que exala dele suaviza a dor. Ela não se lembrava de muitas coisas, mas do cheiro dele ela se lembrava. Suor e vinho e látex e saliva e sexo e um cítrico de pós-barba. Cheiro que ia e vinha conforme ele, persistente, tentava fazer a mágica acontecer. Bem, e ele fez. Ele fez uma, duas, três vezes. Recorde pessoal dela. Talvez não do jeito que ele esperava e queria e se esforçava para, mas ele fez. Com outros recursos. Boca, língua, dedos indicador e médio juntos, condições ideais de temperatura e pressão. E ele parecia saber fazer muito bem o que ele fez. O ritmo, o ângulo, a cadência. Pena que ele estava tão tenso. Por que ele estava tão tenso? Sua não ereção era um lembrete incômodo de que havia um problema. Comigo?

A lembrança da corrente elétrica potente do orgasmo 3/3 volta dissipando o incômodo e acordando seu corpo, e ela sorri. Ela sorri por dentro e por fora. Ela sorri não apenas com a boca. Ela solta um suspiro involuntário, mais alto do que deveria.

Ele

Ele não sabia se era sonho ou realidade ou lembrança. Ele tinha ouvido aquele suspiro uma, duas, três vezes durante a noite. Apesar dos pesares, ela tinha suspirado. Ele não se lembrava de muitas coisas, mas dos suspiros rouquinhos dela ele se lembrava. E do cheiro de suor e vinho e látex e saliva e sexo e um adocicado da baunilha do perfume. Cheiro que ia e vinha conforme ela, paciente, tentava não dar bandeira sobre a decepção da sua não ereção. Ela se esforçou, ele se esforçou. Ela usou suas armas, ele usou as dele.

Boca, língua, dedos indicador e médio juntos, ângulo de 45º, pontas dos dedos voltadas pra cima. Oi, ponto G! Mas ele estava tenso. Por que ele estava tão tenso? Sua não ereção era um lembrete incômodo de que havia um problema. Com ele, naturalmente.

A lembrança da não ereção volta renovando o incômodo e acordando seu corpo. Bem, acordando quase todo o seu corpo. Inferno! Ela merecia mais do que ele.

Ela

Ela quer. Muito. Mas ela teme. E se não conseguir de novo? E se falhar na parte que lhe toca da mágica?

Ele

Ele quer. Muito. Mas ele teme. E se não conseguir de novo? E se falhar na parte que lhe toca na mágica?

Ela

Ela espera. Ela arde. Ela espera mais um pouco. Ele é homem, que tome a iniciativa. Ela prefere escapar a encarar (mais uma) uma decepção. Rejeição dói, melhor não pagar pra ver. Ela diz que precisa ir.

Ele

Ele espera. Ele arde. Ele espera mais um pouco. Ela é mulher, que demonstre que está a fim. Ele prefere fugir a encarar (mais uma) decepção. Rejeição dói, melhor não pagar pra ver. Ele diz a ela que ela precisa ir.

Ela vai. Eles nunca mais se veem. Orgasmos múltiplos, recordes pessoais, condições ideias de temperatura e pressão, ronquinho remix, cheiro morno e dedos precisos a 45º desperdiçados. Quando eles vão abrir os olhos?

MÔNICA SALGADO

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