06 DE MARÇO DE 2020
DAVID COIMBRA
Ronaldinho, o quase menino
O futebol existe para meninos que gostam de jogar bola. É essa a essência do futebol, e nenhuma outra mais. Todos nós, que gostamos desse jogo, ainda que sejamos velhos senhores ou calejados profissionais, todos nós, quando estamos vendo uma partida, pensando ou falando a respeito, somos, na alma, exatamente isso: meninos que gostam de jogar bola.
Quando o futebol perde essa leveza, perde também a sua magia. E deixa de encantar multidões para se tornar apenas um negócio.
Ronaldinho, quando surgiu, representava essa pureza do jogo: ele era um menino que jogava por prazer. Era essa a imagem que passava e era isso que enfeitiçava o mundo. De certa forma, uma espécie de Garrincha, inocente e maravilhoso.
Testemunhei o minuto exato em que esse personagem nasceu e também os vários momentos em que ele foi perdendo pedaços de candura pelo caminho.
O surgimento do menino Ronaldinho para o mundo se deu, ironicamente, no Paraguai, há 21 anos. Eu estava lá, eu vi. Era o jogo da Seleção Brasileira contra a Venezuela no estádio de Ciudad del Este. Ronaldinho entrou no segundo tempo e protagonizou o lance mais lindo daquela Copa América: recebeu a bola dentro da área, deu um balãozinho no primeiro zagueiro, driblou o segundo e chutou: gol, golaço. A plasticidade da jogada encantou o mundo, mas o que mais chamou a atenção foi a comemoração. Ronaldinho corria, saltava, socava o ar e ria com tanto entusiasmo, que chegava a ser comovente. Era uma alegria genuína, uma felicidade explosiva que só poderia ser expressada por uma criança.
Por um menino que gosta de jogar bola. Ronaldinho tinha tudo para ser esse menino: o gênio inato de um Michelângelo de chuteiras, o dom de brincar com a bola como se ela fosse um apêndice do seu pé direito, um sorriso de 200 dentes e uma certa alienação da vida adulta que fazia com que os outros o olhassem com doce condescendência.
Mas Ronaldinho não era assim, e essa verdade foi aparecendo aos poucos. A primeira surpresa se deu em 2001, quando Ronaldinho logrou o Grêmio e fugiu para o PSG. Como assim? O Grêmio não era o seu clube do coração? Ele não dizia que no Grêmio jogaria até de graça? Que conhecia mais o Olímpico do que a sua casa? Meninos não traem os clubes para o qual torcem. Ronaldinho traiu e, ali, ficou menos menino.
Mas Ronaldinho jogava como nenhum outro. Em cinco anos, ele era o dono do planeta, multicampeão, autor de jogadas inverossímeis. Se quisesse, Ronaldinho teria sido Pelé. Ou, talvez, se pudesse. Ele não podia, porque não era quem parecia ser. E, no evento em que Ronaldinho deveria ter se consagrado para sempre, a Copa de 2006, as deformidades da sua personalidade foram mais fortes do que a excelência do seu futebol. Eu também estava lá e também vi. O Ronaldinho que chegou à Alemanha era um desconcentrado, distante, dava a impressão de não compreender o que se esperava dele. Tive a oportunidade de entrevistá-lo com exclusividade no vestiário da Seleção. O então preparador físico Paulo Paixão me levou até ele e ficamos a sós, o que era raro naquela cobertura. Perguntei:
- Quando tu vai jogar a tua bola? Quando tu vai para cima deles? Quando tu vai assumir o protagonismo desse time?
Ronaldinho tergiversou, disse que não era bem assim, que os outros jogadores eram igualmente importantes? Estava cheio de reticências e cheio de reticências foi o seu jogo até a eliminação do Brasil. Depois da Copa, Ronaldinho nunca mais foi o mesmo. Teve lampejos, como na Libertadores do Atlético Mineiro, mas deixou de ser aquele feiticeiro da bola. Agora, o prazer do futebol perdia para outros prazeres. Agora, definitivamente, ninguém mais o via como um menino.
Esse Ronaldinho detido no Paraguai com passaporte falso não passa de uma lembrança daquele Ronaldinho que vibrou com euforia juvenil a marcação de um gol. Não passa de um traço triste de alguém que ele poderia ter sido. E não foi.
DAVID COIMBRA
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