A bola da vida, a vida da bola
É madrugada, o estádio está vazio e silencioso como um cemitério ou uma escola no domingo. Eu, a bola da vez, a da Copa de 2018, chamada de Telstar, acordo ao lado de outras bolas, neste frio armário de aço.
Desde 1930, em cada Copa do Mundo, apareci de formas e cores diferentes. Já fui marrom escuro, marrom claro, branca, branca e preta, amarela, tricolor, branca e azul e bonita e colorida na África em 2010, quando me chamaram de Jabulani (celebração), com 11 cores, representando os dialetos e as etnias. Fui meio rebelde naquela Copa e fazia curvas inesperadas. E daí, qual o problema? No Brasil, em 2014, fui a Brazuca, em homenagem ao orgulho de ser brasileiro. Os alemães, educados, já se desculparam pelas sete vezes que me colocaram no filó. Só lembram de mim na hora do jogo.
O juiz filho da mãe me bota no centro, apita e manda me rolarem. No início, vão me dar uns toquinhos carinhosos, depois virão os pontapés fortes, as cabeçadas vigorosas, os empurrões nas cobranças de laterais e os passes e os chutes "colocados", sem muita força, que de tão bem colocados me fazem entrar lá no ângulo superior da goleira, onde dorme a coruja e os goleiros não conseguem chegar.
Aprendi a gostar dos tapas e beijos, vou levando minha vida de bola, sendo a bola da vida, para quem ainda gosta de metáforas clichês, tipo "o futebol é o jogo da vida". Uns acham que o futebol é só um jogo maravilhoso, outros metem sindicato, política e grandes interesses financeiros no meio, com aquela corrupçãozinha humana básica junto. Mas isso deixa para lá. Sou só uma bola que prefere ser redonda. É hora de festa.
O livro do americano sobre as negociatas do futebol fica para depois. Os boleiros têm relações muito ambivalentes comigo, tipo assim amor e ódio. No fundo, me amam. Em certos momentos, me colocam com cuidado na marca do pênalti, perto das bandeirinhas de escanteio ou no lugar onde vou ficar para baterem a falta. Aí levo um chute forte, mas, mesmo assim, dependendo do jeito como for tratada, vou cair no fundo das redes.
Ou vou levar um soco do goleiro, um golpe de mãos espalmadas ou um abraço, como se eu fosse um bebê. Se o goleiro me pegar, vai gostar. Se for gol, vai me odiar e dar um pontapé para eu ir ao centro do gramado. Modestamente, sei que sou o centro das atenções. O estádio todo me acompanha, e as máquinas fotográficas e câmeras de televisão me seguem. Quando o jogo termina, aí é a solidão do vestiário, com as bolas reservas até o próximo treino ou jogo. Treino é treino, jogo é jogo.
Gosto mais do jogo, tem mais gente me dando atenção. Sempre assim, até eu murchar e me aposentarem. Óbvio que gosto quando os jogadores, geralmente em casa ou escondidos, me dão abraços e beijinhos. Me acho importantíssima quando o jogador do time que está perdendo faz um gol e, em vez de comemorar, me pega no fundo das redes e leva até o centro, para tentar outro gol.
a propósito...
a propósito...
Odeio quando chamam de bola a propina em negócios públicos ou privados. "Fulano levou bola" - isso é falta de respeito comigo, uma senhora idosa, mundialmente conhecida. Vão se catar! O que é que estão pensando? Bola cheia, bola redonda ou bola murcha ainda aceito, e óbvio que não gosto quando me passam errado e fico quadrada. Vão treinar!
Gosto quando os pés dos atletas me tocam como se fossem mãos, como os pés de craques como Pelé e Puskás, por exemplo. Ter as mãos no lugar dos pés não é para qualquer um. Gosto de ficar parada e também de rolar, tipo assim a vida, que é imobilidade e movimento. Não reclamo de quando me movimentam em linhas retas, mas prefiro as curvas do caminho, que, afinal, retas parecem mais a morte, e curvas parecem mais vida. (Jaime Cimenti) -
Jornal do Comércio (https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/colunas/livros/2018/06/635096-madonna-aos-60-anos-a-maior.html)
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