segunda-feira, 25 de junho de 2018


25 DE JUNHO DE 2018
CLÓVIS MALTA

Viver de bolso vazio


Quando o dinheiro sobra, perde-se o entendimento do que seja viver em dificuldade. Não adianta compreender as agruras alheias em tese. É no cotidiano de quem leva a vida de bolso vazio que a miséria se revela, sem nenhum charme.

São Petersburgo, onde brasileiros saíram do sufoco para a euforia já nos acréscimos de Brasil e Costa Rica, é um símbolo ao mesmo tempo majestoso e cruel de iniquidade. Nikolai Gógol usou-a como cenário de O Capote, clássico da literatura russa. No texto, um servidor humilde é informado pelo alfaiate de que nada mais pode ser feito pelo seu velho sobretudo. De tão puído, o tecido se rompeu. Desfez-se como a alegria de quem, na Rússia czarista ou no Brasil de hoje, se dá conta da total falta de nexo entre o custo de se vestir e os ganhos do trabalho.

O personagem do conto vai a um inferno de penúrias para voltar às ruas de casaco novo - e o perde num assalto. Resignado, confia na ajuda da polícia. Mas o que encontra pela frente é uma burocracia hipócrita e insensível ao cotidiano dos cidadãos. Como a obra vai muito além, essas informações não podem ser consideradas spoilers. Vale, pois, leitura ou releitura para quem busca entender a condição humana.

Alguma semelhança com a nossa realidade? Aquele parente que, em todas as famílias, vive de pedir emprestado deixou há muito tempo de ser o único a nos inquietar. Em todas as esquinas, pessoas escancaram hoje um cartaz com a palavra "Fome". Muitas delas nunca tiveram trabalho. A maioria perdeu o emprego. Há ainda quem alegue que o salário é fugaz, e o mês, interminável. A palavra mágica é dinheiro, money, money, money. Aquilo que faz o mundo girar, como em Cabaret, antigo musical sobre outro período de miséria - o da Alemanha à beira do nazismo.

Como em qualquer outra época de nossa dita civilização, dinheiro existe, mas está nas mãos de poucos. Até mesmo na Rússia e na Ucrânia, que reivindicam a nacionalidade de Nikolai Gógol, houve uma tentativa de atenuar as diferenças de renda quando ainda faziam parte da União Soviética. Adivinhe quem venceu? A casta detentora do poder se fortaleceu mais ainda.

Por que uns poucos têm casacos para cada dia do mês no guarda-roupa e, outros tantos, nenhum? Por que, para alguns, adquirir o necessário é rotina e, para os demais, algo que não se realiza nem em sonho?

Quem carrega dinheiro em malas nem imagina como uma moeda pode transformar água em vinho entre necessitados. Quem joga comida fora ignora o real significado de uma fatia de pão. Quem recebe auxílio-moradia bancado pelos contribuintes desconhece o que seja dormir e acordar na rua.

Muita gente assume uma vida simples. Há quem opte por sobreviver com pouco ou nenhum dinheiro. É bonito, mas diferente.

Viver sem o mínimo necessário, por falta de opções, é um padecimento eterno. É como se uns poucos fossem donos do mundo. E só deixarão de pensar assim ao se constatarem sem chão, sem escada. Pois aí, como nos repete o Mantra entoado por Nando Reis, o coração deles... acordará.

Quando os endinheirados entenderem o que é uma vida de privação, o país será finalmente outro, e de todos.

*Até o dia 16 de julho, David Coimbra escreve no Jornal da Copa, encartado nesta edição.

CLÓVIS MALTA

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