sábado, 9 de maio de 2009

Por que gosto de Borges (Uma série infinita)

Um dos grandes livros de Jorge Luis Borges se chama El Hacedor, em bom português O Fazedor. Contém ensaios, contos e poemas, tudo breve, mal alcançando duas páginas os maiores dos textos. E ali está um mundo, ordenado em 1960, quando saiu pela primeira vez e o autor havia completado sua sexta década de vida.

São vários os textos magníficos do livro, mas meu gosto vem de algo anterior a eles, inscrito já no título: Borges, homem culto, foi um fazedor, sabendo que essa qualidade, no plano filosófico, se opõe a ser um pensador (me dei conta disso lendo um belo artigo da Kathrin Rosenfield sobre o autor portenho).

Fazedor é simplesmente aquele que faz, e isso, em arte – devo dizer, a bem da precisão, em arte que conhece e reconhece a tradição, em arte feita no âmbito culto -, significa duas coisas que me agradam igualmente: uma confiança na técnica artística, não na inspiração e no voluntarismo – Camões já sabia disso quando disse que para compor precisava de engenho e arte, invenção e técnica respectivamente – , e uma opção por fazer a arte pensar, abrindo mão de elaborar pensamento formal, acadêmico, em favor de produzir arte que traz em si, conscientemente, a reflexão sobre a vida.

No miolo dessa pororoca está a forma chamada ensaio.

Vanguarda sem humor

Uma das coisas que me afasta da vanguarda, ao lado da tendência desaforadamente autocongratulatória que a acompanha na medula e do militante desprezo pela inteligência alheia, é a falta de humor. É compreensível: quem se considera vanguardista, para fazer jus a tal, pensa em si como alguém que corre riscos, enfrenta inimigos, se imola para conquistar territórios novos – temas, formas, procedimentos, mercados, sabe-se lá o que mais –, e por isso não tem tempo para humor.

(Eu digo que não tem é alcance para ele.) Pode ter tempo para a piada, para o chiste, para o trocadilho, mobilizados contra o que considera seu alvo; mas humor, de rir com o cérebro, de rir de si mesmo, de rir percebendo o ridículo próprio ao lado do alheio, negativo.

(Falando nisso e aproveitando o item: me aborrece também, na vanguarda, a para mim incômoda semelhança entre ela e a mercadoria, ambas sempre garganteando o novo e se regozijando com ele. Me assusta isso, me estarrece que não vejam isso.)

Vanguarda com humor

Vai daí, lembrei do Macedônio Fernández, amigo do Borges, mas bem mais velho que ele (1874-1952), maluco beleza, espécie de vanguardista sem autocomiseração ou euforia (nem proselitismo) e cheio de humor. Ainda esses dias evoquei uma frase dele, lembrada por Borges, “A arte não precisa chorar para fazer chorar”. Trata-se de um inimigo do espalhafato.

Macedônio tem uma obra vasta, irregular, cheia de arestas e mal editada, quase o pior dos mundos para quem tem preguiça de pensar, o paraíso para quem aprecia o desafio da invenção.

Em um de seus ensaios de pretensão filosófica, Para uma Teoria da Arte (publicado no volume 3 de sua Obra Completa, Buenos Aires, editora Corregidor, 1990), vamos encontrar algumas frases que cito aqui para contraste com aquela conversa ufanista.

“Em Arte, maior confiança merecem as obras de dúvida da arte, que as de certeza de arte”. Inimigo do realismo trivial, da cópia da vida, para ele a verdadeira arte é “emoção, estado de ânimo, não sensação”.

“A Arte está somente na técnica de suscitação de estados que não estão na vida, nem no leitor nem no autor, sem essa técnica”. “A Música não é soluço nem riso, e quando chora não faz chorar”. Um chiste sobre a poesia gauchesca: “Triste é a vida do gaúcho, sempre falando em versos”. Aliás, é dele aquela piada de que o gaúcho é uma invenção para entreter o cavalo, não do Borges.

Frase matadora, comentário que elejo para concluir essa conversa toda sobre vanguarda: “Várias vezes comecei o estudo da metafísica, mas sempre me interrompeu a felicidade”.

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