quinta-feira, 28 de maio de 2009



LEITE REQUENTADO

Fiquei nas alturas. Li o último romance de Chico Buarque, 'Leite Derramado', no avião entre Porto Alegre e Rio de Janeiro.

Moacyr Scliar dormia tranquilamente duas ou três poltronas atrás de mim. Ao chegarmos, ele, com sua gentileza proverbial, me deu uma carona até a Uerj, bem na frente do Maracanã.

Das janelas da universidade, os estudantes contemplam o mítico estádio e sonham com a glória. Alguns se suicidam. Não tive tempo de compartilhar com Moacyr as minhas impressões da leitura. Eu estava meio aéreo.

A vida é assim, rápida. Outro dia, filosofei durante três horas com um motorista, ex-jogador de futebol, num engarrafamento na marginal Tietê. A gente aprende muito em viagens. Basta não se ter pressa.

Pensaram que eu ia pipocar? Um colorado nunca amarela. Ao contrário do que tem dito a crítica burra, 'Leite Derramado' é o melhor livro do queridinho das cinquentonas. Supera facilmente 'Budapeste', que foi detestado pelos húngaros pelo excesso de clichês.

Também pudera, Chico se deu o luxo de escrevê-lo sem dar um pulinho à Hungria. Quem se importa com húngaros! Como diria o Garrincha, é tudo João. Não tem Chico. A questão central da história de 'Leite Derramado' é absolutamente original:

Matilde traiu ou não traiu? Se o texto fosse assinado por um qualquer, João ou Chico, se falaria em cópia de uma ideia, plágio de uma inspiração ou de café requentado. Como se trata de Chico Buarque, bem entendido, pode-se falar em intertextualidade, piscadela e citação. O bruxinho da zona Sul reinventa o Bruxo do Cosme Velho. De Capitu traiu ou não traiu a Matilde traiu ou não traiu, convenhamos, o salto é mesmo amazônico.

O texto é elegante, esmerado, com ritmo musical. Está certo o editor Luis Gomes, da Sulina, chiquista fanático: algumas notas das mais conhecidas músicas de Chico Buarque ecoam no romance. A literatura brasileira é tão mixuruca que um leite requentado tem mais gosto do que muito coquetel pretensamente sofisticado.

Para decolar e se manter em voo de brigadeiro, no entanto, 'Leite Derramado' precisava de um empurrãozinho. 'Caminho das Índias' tem ajudado mostrando em vários capítulos a capa do livro. Faz sentido. Uma mão lava a outra. 'Leite requentado' fala deste Brasil de relações e favores, de golpes e de senadores, de grandeza e decadência, de gente poderosa sempre com um pé na cozinha. Traiu ou não traiu?

Chico Buarque segue direitinho o mestre. Semeia pistas e dúvidas. Faz crer e descrer. Capricha na melodia. Cadencia o ritmo. Matilde é mulata. Matilde é filha de criação. Matilde pode ter fugido com um francês. Matilde ficou tísica. Matilde é apenas uma lembrança na mente confusa de um velho de 100 anos.

Matilde traiu ou é a memória do centenário que o trai? O Bentinho do Chico Buarque vai ao fundo do poço. 'Leite requentado', quer dizer, 'Leite Derramado', só não é um perfeito 'Dom Casmurro' por um detalhe: faltou a ironia cruel. Ora, quem se importa com ironia? Só mesmo um Machado de Assis.

juremir@correiodopovo.com.br

Aproveite a quinta-feira - Um bom dia, especial para você.

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