quinta-feira, 28 de maio de 2009


Dulce Critelli

Um lugar para beijar

[...] A SEXUALIDADE ESTÁ ENTRE AQUELAS QUE MAIS NOS INCOMODAM E CONSTRANGEM DE TODAS AS DIMENSÕES HUMANAS

Assisti na semana passada, no cine Olido (com próxima exibição no cine Bombril), ao documentário "Um Lugar para Beijar", dirigido pela jornalista Neide Duarte e produzido pelo departamento de DST/ Aids da Secretaria de Saúde do município de São Paulo.

O filme tem finalidade institucional nas ações de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e mostra a vida e as condições de homossexuais (e de travestis e transexuais) na periferia de São Paulo.

No fim da exibição, vi pessoas chocadas. Uma delas disse que sentia-se contaminada por aquilo que sempre tentou manter à distância. O que pensou que não existisse poderia estar ao lado, disfarçado. Ela contou estar com a sensação de perda de confiança em seu mundo. Acredito, porém, que ela tenha perdido a inocência ou a ilusão da normalidade.

A gente se acostuma com os cantos por onde anda e com as pessoas com quem convive, com nossas condições de vida e valores. A gente se acostuma com os próprios costumes e vai cultivando, assim, uma espécie de cegueira. Não vê que a vida é múltipla, irregular, e que os homens são criaturas que protagonizam novidades infinitas.

O que para a sociedade padronizada é aberração, desvio e imoralidade é apenas a experiência cotidiana de muitos. No entanto, quando condenada e entregue ao ocultamento, fica deformada e ameaçadora. No documentário, é a homossexualidade de moradores da periferia que está em foco. Mas ela não é desdenhada nem recriminada. Ela é o que é.

Também não é vista sob o olhar comum e preconceituoso que a faz ser lugar de muitos dos problemas sexuais da atualidade. A heterossexualidade, aceita pela sociedade, é também lugar de incontáveis desvios.

É só nos lembrarmos de casos como o do austríaco que manteve a filha encarcerada por 20 anos e teve com ela vários filhos. Ou dos inúmeros casos de abusos sexuais de meninas por pais e padrastos ou de violências contra a mulher.

Casos que, mais do que desvios, são crimes.

Mas não sou especialista em sexualidade nem pretendo teorizar sobre ela. O que me instiga são as perguntas que o documentário trouxe e nossas reações diante do sexo. A sexualidade, em qualquer uma de suas formas (bi, hetero, homo, trans), está entre aquelas que mais nos incomodam e constrangem de todas as dimensões humanas. Ou entre as que mais nos atraem. Por quê?

Numa cultura que nos faz acreditar que atos e palavras podem ser escolhidos pela razão, as questões sexuais nos desmentem e desorientam. Diante da aparente autonomia do sexo, ficamos perplexos, do mesmo modo que são Paulo se espantava diante da impotência de sua vontade: "Por que faço o mal que não quero e não faço o bem que quero?".

Somos um problema para nós mesmos quando afetados por uma dimensão da vida humana assim contundente e provocativa. Ficamos desarrumados em nossa moralidade, desafiados e desautorizados em nossos princípios e preceitos.

DULCE CRITELLI, terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

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