sábado, 23 de maio de 2009



24 de maio de 2009
N° 15979 - PAULO SANT’ANA


Só pode ser amor

Não sei onde estava e do que me possuíra quando escrevi a coluna abaixo.

É tão inacreditável, que chego a pensar que não fui eu que a escrevi. Como posso ter chegado a tão grande altura? Ei-la, deixem eu me exibir:

Eu já devia ter pressentido que era amor quando curtia magnífico prazer somente em olhá-la de longe. Eu já devia saber que era amor quando vibrava com seus êxitos e me entristecia com seus embaraços.

Eu tinha que ter percebido que era amor quando me sentia invulnerável à solidão se me aproximasse dela a um raio de 20 metros. Só podia ser amor aquele estremecimento que me percorria todo o corpo quando ouvia sua voz se dirigindo para os outros.

E quando, num ambiente repleto de pessoas, eu passava a não distinguir as feições de todos, vendo-os apenas como vultos expletivos, realçando-se como esplendorosamente icônica sua figura arrebatadora, já naquele tempo eu não devia ter duvidado de que era amor.

Já era fortemente suspeito que durante as minhas tristezas elas desaparecessem como por um milagre se eu usasse como antídoto a simples lembrança do seu meigo sorriso.

E que, quando diante da visão dela por apenas um segundo, durante o resto do dia os meus passos e gestos se impregnassem de alegre coragem de viver. Ou como naquele dia em que topei abruptamente com ela no estacionamento e fiquei tão ruborizado, que parecia estar focado pelo facho de luz emanado da palavra de um profeta.

Não podia ser outra coisa aquela constante palpitação, aquela ruidosa esperança, aquele contentamento ansioso nas manhãs e o meu pulsante e taquicárdico coração vibrando ante a obsequiosa visão de sua esplendente silhueta vespertina.

Só podia ser amor a minha alma assim tão cheia de cuidados para preservar o meu segredo, o medo de que minha palavra ou o meu escrito, num escorregão, violassem o esplêndido sigilo do sentimento abrasador que me dominava.

Só podia ser amor que, depois de ela ter surgido luminosa na escarpa da caverna da minha solidão, eu deixasse de me entregar ao exercício fastidioso da comparação. Ninguém ou nada mais se equivalia ou se assemelhava a ela, mãe, irmã, parceira, namorada, companheira.

Cheguei loucamente a pensar que a única cidadela capaz de manter íntegro aquele meu frágil amor inconfessável era mantê-lo em segredo, imune ao conhecimento dos outros e até mesmo incrivelmente dela.

Dar a conhecê-lo arrastaria ao tremendo risco de fazê-lo soçobrar ali adiante, presa fácil do fastio da convivência ou de uma resposta contundentemente adversa.

Ah, silencioso amor cheio de delícias e ilusões. Precavido amor que não se declara com medo da quebra do cristal.

Ah, amor que quanto mais distante mais crescente, quanto mais errante mais certeiro, quanto mais secreto mais ditoso, quanto mais expectante mais real, quanto menos empírico mais ideal, quanto menos dela mais meu, quanto mais irrealizado mais duradouro, quanto mais prometido mais honrado.

Quanto menos compartilhado, mais definitivo. Amor por eleição, tão alto, tão profundo, tão desinteressado, que não importa sequer o que faça dele e do seu mandato a sua eleita.

Nem que o malbarate por não pressenti-lo.

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