sexta-feira, 1 de maio de 2009


CARLOS HEITOR CONY

O anão e o príncipe

Por dentro, sou o anão de Par Lagerkvist, com sua dose de mau humor e permanente irritação

APROVEITEI OS feriados da semana passada para curtir algumas releituras que há muito vinha adiando. Não chegou a ser um fato heroico em minha biografia: choveu nesses dias dedicados a Tiradentes e à Consciência Negra.

Com chuva, o Rio é uma cidade como outra qualquer: não se tem muita coisa a fazer.

O melhor mesmo é aproveitar o tempo -que de repente fica enorme e custa a passar- em revisitar os primeiros deslumbramentos, buscando no passado um aumento de pressão nas caldeiras fatigadas que poderão me levar adiante -embora isso não me adiante muito.

De qualquer forma, é uma força que se busca e que não depende da generosidade de ninguém. Tranquei-me no escritório, desliguei computador, telefone e campainha e reli, ao todo, de uma só tirada, quatro livros que há muito me prometera reler todos os anos.

Leituras antigas, de um tempo em que estava longe a ideia de um dia escrever um livro. Bem verdade que, às vezes, vinha a tentação de botar para fora alguma coisa, sem confessar isso a ninguém, eu me julgava um projeto de escritor, mas sem fanatismo, e desde que não precisasse botar os bofes para fora.

Se conseguisse escrever alguma coisa, ótimo. Se conseguisse, além de escrever, publicar, mais ótimo ainda. Se além de escrever e publicar, ganhasse alguns cobres com isso e conseguisse sobreviver, além de mais ótimo ainda, resolveria alguns problemas obviamente básicos.

Bom, isso ficou no passado, como no passado ficaram esses livros que tanto me impressionaram. Volta e meia, olhava-os na estante, as lombadas escurecidas, o dourado dos títulos quase ilegível.

Verdade que tinha medo de visitá-los: aprendi com um velho filme de Julien Duvivier ("Um Carnê de Baile") que não se deve peregrinar através da memória, ainda que não se defronte com o passado.

Peguei o primeiro deles, "O Anão", de Par Lagerkvist, um autor sueco, prêmio Nobel por sinal, em tradução francesa. Não tenho certeza, mas acho que bem mais tarde já recebeu versão em português.

Depois de "O Anão", reli "Fontamara", de Ignazio Silone, no original mesmo. Foi um encantamento e um susto. Tanto em Lagerkvist como em Silone encontrei situações, atitudes, constatações e até mesmo personagens que, por estranha e honesta transferência, desaguaram em alguns de meus livros e, certamente, no personagem principal de minha obra que sou eu mesmo.

Por autodefesa ou qualquer outro mecanismo que não entendo, esqueci essas influências nos meus subterrâneos de sombra, mas elas afloravam, em livros, artigos e no meu viver de cada dia, um homem caminhando pelo mundo e pela vida.

Por dentro, sou o anão de Par Lagerkvist, com sua dose de mau humor e permanente irritação contra o homem, a mulher, o amor, o prazer -Deus e o Diabo. Tal como o anão, boto no mesmo saco Deus e Diabo com tudo o que eles equivalem ou representam.

Há uma cena que me horrorizou, 60 e tantos anos atrás e que hoje compreendo e justifico.
Metendo-se numa guerra ao lado de seu poderoso Príncipe, o anão penetra num castelo conquistado e corre diretamente aos porões onde sabe que encontrará o anão do senhor derrotado.

Realmente, num cantinho escuro da cela, escondido entre ratos e morcegos, ele descobre o anão daquela corte, "ainda vestido de menino para entreter o seu amo". Com um punhal embebido em veneno, ele mata o anão do outro príncipe, não por necessidade de guerra ou para se livrar de um possível concorrente, apenas por desprezo. Um anão que serve a um príncipe, como ele servia, não merece viver.

Bem, li outros livros e gostaria de falar neles. Mas essa breve cena do anão de tal forma me perturbou, que reagi à minha maneira: tornei-me, eu próprio, uma espécie de anão.

Tantas fez que o príncipe o desterrou para sempre, trancando-o numa enxovia cheia de cobras e morcegos, nos porões mais tenebrosos do castelo. Mas o anão nem deu bola para o castigo. Escrevia um diário e nele deixou uma verdade: "Sei que em breve ele me virá buscar. Nenhum príncipe pode passar muito tempo sem o seu anão".

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