sábado, 10 de novembro de 2007



11 de novembro de 2007
N° 15415- David Coimbra

Tudo passa, tudo volta

Esses pichadorezinhos que rabiscam hieróglifos nos viadutos de Porto Alegre, eles não passam de bandeirantes perto do velho Toniolo. Aquele, sim, como os jumentos, deixava a marca de seus cascos por onde passasse.

Em cada muro, em cada pedaço nu de parede, em cada desvão liso da cidade, lia-se, sempre em preto, com sua caligrafia característica: "Toniolo governador", "Toniolo presidente" e, finalmente, "Toniolo rei".

Em 1982, quando Jair Soares venceu a primeira eleição direta para governador desde o golpe da Redentora, Toniolo prometeu:

- Vou pichar o Palácio Piratini durante a posse do novo governador.

O Estado mobilizou todas as suas instâncias repressoras para impedi-lo. A Brigada cercou o Palácio, agentes de terno preto foram espalhados pela Praça da Matriz, atrás de óculos escuros, falando em walkie-talkies, sisudos, olhando para os lados.

Pois, de alguma forma, Toniolo conseguiu. Escreveu: "Toniol". E foi preso. Anos depois, lamentava não ter tido tempo de fechar o O do nome, mas se orgulhava de ter vazado por instantes o aparato de segurança.

Claro que ver o nome do Toniolo por todo o lugar era algo aborrecido, mas sua megalomania onipresente acabava se tornando divertida, ao contrário das pichações de hoje, que são só sujeira.

Havia outra pichação ubíqua nos muros da cidade, naquele tempo: "Deu pra ti, anos 70". Um filme da época. Muito pensava nessa sentença, deu pra ti, anos 70.

Porque se tratava de uma espécie de recalque com o qual se estava rompendo. Um grito de alívio. Uma comemoração. Os anos 70 partiram para sempre, que bom. Será que foi tão bom? Não sei. Mas sei que ele estava certo, o homem que cunhou essa frase.

Tudo mudou, depois que se foram os anos 70. No fim dos anos 80, alguém proferiu uma frase famosa sobre a diferença entre as duas décadas: "Collor e Aids: que saudade do Figueiredo e da gonorréia".

Foi assim. Tudo se renovou de lá para cá. Mas agora, há poucos dias, um fato uniu o final dos anos 70 a essa segunda metade da primeira década do século 21: Abel Braga foi flagrado a dormir gostosamente durante um treino do Inter.

Lembrei-me de pronto de Orlando Fantoni, técnico do Grêmio de 1979, que os jogadores chamavam, com carinho, de "titio".

Pois titio Fantoni também tinha o hábito de tirar sonecas enquanto os jogadores do Grêmio treinavam. Assim foi fotografado e filmado um sem número de vezes, e nem zangado ficou, levou na esportiva.

Titio Fantoni possuía, como Abel possui, uma qualidade importante no futebol: ele ouvia seus jogadores. Num Gre-Nal de decisão de turno, o melhor jogador do Grêmio, Paulo César Caju, não poderia atuar.

O Grêmio tinha um belo time, com Manga no gol, Eurico na lateral-direita e Dirceu Jarrão na esquerda. No meio da área, Ancheta e Vantuir, o substituto de Oberdan.

No meio, ainda Vitor Hugo e Iúra, mais Paulo César em lugar de Tadeu Ricci. E, na frente, o superataque Tarciso, André e Éder, com Baltazar, o goleador de Deus, pedindo passagem com suas cabeçadas certeiras.

Mas o Inter... ah, no Inter havia craques à mancheia: Benitez, Falcão, Batista, Jair, Valdomiro e um jovenzinho que viria a se tornar um dos maiores zagueiros do Brasil em todos os tempos: Mauro Galvão.

Nesse Gre-Nal sem o Caju, exatamente pela ausência do Caju, o favorito era o Inter de Falcão. Que precisava vencer, ao Grêmio bastava o empate. O drama gremista, e por conseqüência do titio, era esse: como marcar Falcão? Foi o Caju quem sugeriu:

- Bota o Jurandir em cima dele.

Jurandir era um baixinho que viera do Caxias direto para a reserva no Olímpico. Era estranho isso de ele marcar o Falcão. Era impensável, até.

Mas o titio acatou e, como se sabe, Jurandir anulou Falcão, o jogo ficou em zero a zero e o Grêmio levou o turno. Até hoje o Falcão fala com um traço de irritação daquele clássico.

- Eles não passavam a bola para mim - diz Falcão, referindo-se aos seus companheiros, que, vendo-o sempre às voltas com Jurandir, o descartavam dos lances.

E foi assim, titio Fantoni dormia nos treinos, mas, nas partidas, ouvia seus jogadores, e desta forma ganhou o jogo, e depois o campeonato. Como Abel. Direitinho que nem o Abel. Tudo passa, mas, como se sabe, tudo volta também.

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