segunda-feira, 15 de abril de 2024


15 DE ABRIL DE 2024
CLAUDIA LAITANO

Biblioteca que fala

Nem sempre, ou quase nunca, um discurso de posse na Academia Brasileira de Letras provoca algum tipo de expectativa. A coisa muda um pouco de figura quando o novo imortal, além de fazer História ao ser admitido na casa, tornou-se conhecido exatamente pela repercussão de um discurso.

É difícil evocar qualquer outra ocasião na história do Brasil em que o impacto estético de um pronunciamento tenha comunicado tão bem uma ideia, e chamado tanta atenção para uma causa, quanto o dia em que Ailton Krenak ocupou a tribuna da Assembleia Constituinte, em setembro de 1987, para lembrar os deputados encarregados de escrever a nova Constituição de que existia um jeito de viver e de pensar nas comunidades indígenas que era legítimo e devia ser respeitado.

Mais velho, mais relaxado e falando para uma plateia de admiradores, Krenak é outro, mas continua o mesmo - como o Brasil. Em seu discurso de posse, no último dia 5 de abril, o primeiro imortal indígena em 127 anos de ABL respeitou os rituais da casa, mas não ignorou a fricção entre a cultura letrada da língua portuguesa e os 305 povos que ele passou a representar na instituição. Vestiu o fardão, mas manteve a bandana Kaxinawá que o identifica. 

Homenageou o patrono e os antigos ocupantes da cadeira número 5 (entre eles, Rachel de Queiroz, a primeira mulher a ingressar na Academia, em 1977), como manda o protocolo, mas não abriu mão do improviso e do bom humor. (Poderia ter feito alguma referência irônica ao poema O Elixir do Pajé, publicado pelo patrono Bernardo Guimarães em 1875, mesmo ano de A Escrava Isaura, seu livro mais conhecido, mas basta ler os dois primeiros versos para entender por que a citação talvez não pegasse muito bem, mesmo diante de uma plateia tão selecionada.)

Ailton Krenak tem 15 livros publicados e é traduzido em vários países e idiomas. Sua obra mais conhecida, Ideias para adiar o fim do mundo, de 2019, contribuiu para que ele recebesse o Troféu Juca Pato de intelectual do ano em 2020. Ainda assim, o novo imortal não se considera um escritor. Krenak habita o "oceano da oralidade", que ele também fez questão de evocar no discurso de posse: "Todo mundo que escreve livros incríveis escutou histórias de alguém que não escreveu livros". Muitas dessas histórias, na forma de conversas, entrevistas e conferências, estão disponíveis no YouTube (inclusive os dois discursos, o de 1987 e o de 2024), e o canal Selvagem - Ciclo de estudos sobre a vida vem selecionando e organizando o acervo oral do autor.

Em 2024, essa "biblioteca que fala e não pede silêncio", na definição do próprio Krenak, que o Brasil nem sempre soube ou quis escutar, é o que boa parte do mundo está interessada em ouvir.

CLÁUDIA LAITANO

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