terça-feira, 9 de abril de 2024


09 DE ABRIL DE 2024
NÍLSON SOUZA

A fábula dos cães ferozes

Somos a espécie fabuladora. Os demais animais não criam histórias para viver outras vidas, como fazemos quando escrevemos ou lemos um romance. A ficção literária - explica o grande Vargas Llosa - nos permite viver a vida dos personagens, e essa foi a maneira que encontramos para ampliar e multiplicar a nossa própria vida, que é breve demais para toda a expectativa que nosso inquieto espírito comporta.

Os cães talvez sejam menos imaginativos, mas são seres amáveis e, seguramente, têm melhor caráter do que muitos humanos. Costumam ser fiéis, dóceis e afetivos com seus tutores e com outras pessoas de seu convívio. Alguns até nos surpreendem por suas atitudes nobres e inteligentes, como aqueles que são adestrados para acompanhar pessoas com deficiência ou que, espontaneamente, protegem crianças em situações de perigo.

Na semana passada, no Rio de Janeiro, três cães da raça pitbull quase mataram a escritora e poetisa Roseana Murray, consagrada autora de livros infantis - entre os quais Um Cachorro para Maya, centrado na amizade entre um pet e uma menina. Escrevi pet apenas para evitar repetições, pois também não aprecio muito o termo estrangeiro copiado do inglês e originado de uma verdadeira miscelânea linguística. Outro dia o talentoso cartunista Santiago fez uma crítica irônica sobre isso nas redes sociais:

- Chamar guaipeca de pet é the end of the picada - brincou.

A brincadeira aqui reproduzida destina-se a aliviar o tema desta crônica, que é muito sério e bastante doloroso. Dona Roseana, que teve um braço e uma orelha decepados pelos cães, tinha saído de casa para caminhar, como também costumo fazer no meu bairro todas as manhãs. Felizmente, nunca encontrei cães agressivos soltos, muito menos animais maltratados e debilitados como estavam os que atacaram a escritora, conforme o relato da polícia fluminense.

Evidentemente, a culpa não é dos bichos, que apenas deixaram o instinto natural aflorar numa situação de estresse. Seus tutores humanos (na verdade, desumanos) é que são os verdadeiros responsáveis, tanto por manterem cães ferozes mal vigiados quanto por submetê-los a maus-tratos incitadores da ferocidade. Agora todos estão presos - os donos e os cães. Espero que os primeiros tenham bastante tempo para refletir sobre suas condutas atrás das grades e que os segundos recebam tratamento digno.

E que a fabuladora se recupere para continuar contando histórias e multiplicando as vidas dos leitores.

NÍLSON SOUZA

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