sexta-feira, 24 de abril de 2020


24 DE ABRIL DE 2020
EDUARDO BUENO

O túmulo da liberdade

Embora o dia estivesse radiante e as ruas juncadas de folhas de mangueira, lascas de canela e ervas perfumosas, algo não cheirava bem no Rio de Janeiro quando, ao raiar de 8 de março de 1808, a família real portuguesa e sua comitiva de 15 mil pessoas desembarcaram na cidade destinada a ser a capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Todos cedo descobriram que tinham vindo parar numa cidade acanhada, fétida e insalubre, "a exalar os piores miasmas".

Tantas doenças grassavam no Rio - lepra, tifo, malária, sarampo, influenza e varíola - que Dom João logo estabeleceu a Fisicatura-Mor do Reino, nomeando Manoel Vieira da Silva Borges e Abreu o físico-mor da Corte e Estado do Brasil. O alvará que regia suas atribuições, assinado em 23 de novembro de 1808, concedia-lhe "notáveis prerrogativas". Baseado no conceito de "polícia médica" (surgido na Alemanha em 1764), Borges e Abreu foi encarregado de "desarraigar antigos e prejudiciais abusos na área da saúde". O regimento determinava ainda que os governadores-gerais ficavam "obrigados a lhe dar todo auxílio necessário sempre que solicitados" e, nos casos de sua competência, "não deve nem pode se intrometer nenhuma outra justiça ou autoridade".

Houve uma grita geral: a lei foi vista como "o túmulo da liberdade".

Só após a Independência e com a Constituição de 1824 foi que Dom Pedro I decretou "extinta por uma vez a Fisicatura-mor", acabando com aquilo que as Câmaras Municipais do Brasil chamavam de "o velho poder médico português, monstruoso e autoritário". Municipalizaram-se assim as questões de saúde no Brasil. 

Mas em 1829 o caos sanitário atingiu tais dimensões, que a classe médica fundou a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, e seu presidente, Joaquim Cândido Soares de Meireles, enviou carta a Dom Pedro I alertando que as Câmaras "ignoram o conceito de polícia médica, tem saber leigo e não científico, são incapazes de refletir sobre a saúde e frágeis ou indispostas para fazer cumprir a legislação sanitária, vacilantes para administrar as epidemias, incapazes de bloquear a chegada das moléstias contagiosas, bem como evitar a ruína dos hospitais, apoiar as instituições de caridade, manter consultas públicas e gratuitas e mitigar carência de medicamentos".

A carta finalizava dizendo: "Será preciso a eclosão de devastadora epidemia para que Vossas Excelências percebam o quão depauperada está a saúde pública no Brasil?". Então, em 1848, a febre amarela devastou o Brasil, ceifando a vida de 10 mil pessoas. E a saúde pública voltou a ser uma questão de Estado, na mão dos médicos e não dos políticos.

EDUARDO BUENO

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