quarta-feira, 22 de abril de 2020


22 DE ABRIL DE 2020
PEDRO GONZAGA

A caixa


Isto ocorreu no tempo em que as filas não eram fonte de temor, mas apenas uma circunstância humana, enervante conquanto trivial, feito tantas outras, que hoje, e ao avanço de cada dia, ganham mais e mais os contornos de coisa sonhada, de falsa memória, pois como podíamos apertar sem receio a mão de estranhos e, desprotegidos, falar com eles a distâncias íntimas, sem quaisquer medidas profiláticas? Não lhes parece incrível que nossas lembranças do passado raramente cheirem a álcool?

Naquele tempo, sob a pouca sombra de uma marquise dos Correios, enquanto o calçamento parecia uma dessas pedras abrasadas para cozimento de comidas saudáveis, eu tentava equilibrar alguns pacotes de livros, envoltos em papel pardo, que era preciso enviar Brasil afora. Eu acabara de lançar meu primeiro volume de versos, e toda a alegria de ver que algumas almas caridosas o queriam em rincões do continente, começava a se esfumar diante da longa espera. Não sei se era o retorno de alguma greve, se era uma situação normal de nossos serviços públicos, a fila não se movia.

Atrás de mim estava uma senhora, com uma pequena caixa nas mãos, caseiramente confeccionada, a partir de uma antiga folha de papelão, dobrada e colada com o que me pareceu ser grude, como o que minha avó fazia para os ninhos de Páscoa. Perguntei-lhe por que não tomava a fila prioritária, ao que ela me contestou ser sua saúde melhor do que a minha (e disso não havia dúvidas), estou com setenta e oito e nunca precisei de arregos.

Seus trajes eram bastante humildes e, apesar do calor, levava um casaquinho desbotado, num tom de carne esbranquiçada, os punhos puídos ao final de mangas compridas demais. Ofereci ao menos que passasse na minha frente, o que ela aceitou, mais para eu parar de aborrecê-la, suponho. Tentei iniciar uma conversa miúda sem grande sucesso, mas fui capaz de descobrir que tinha vindo do Alegrete, que morava há quatro décadas no Centro, trabalhara em banco e vivia com um salário de aposentadoria. Aos poucos, mordiscado pela curiosidade, eu só queria saber o que ia dentro da caixa, a quem se destinava, mas a cada investida, ela se fechava em copas. Sorrateiro, captei um nome e um endereço: ia para o Acre, para uma tal Silvana.

Liberta da correspondência, passou por mim e me sorriu, os olhos úmidos e vermelhos e desapareceu no calor da Sete de Setembro.

As melhores histórias não estão escritas no papel, porque já o foram na vida. É que estávamos longe. Quem sabe o mundo tenha sido sempre uma experiência atravessada por luvas e máscaras e tristemente só agora o percebamos.

PEDRO GONZAGA

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