sábado, 18 de abril de 2020


18 DE ABRIL DE 2020
JULIA DANTAS

DESEJO DE MORTE


No fim de semana passado, a Avenida Paulista foi ocupada por um grupo de pessoas que pedia o fim do isolamento social dançando com um caixão erguido acima dos ombros. Era uma referência ao que ficou conhecido como "meme do caixão". Nele, primeiro há o vídeo de alguma atividade arriscada (digamos, uma manobra de skate). O filme é cortado e seguido de outro breve vídeo: o de uma cerimônia fúnebre de Gana na qual o caixão é levado em meio a uma dança. O rito original serve para celebrar a vida da pessoa que se foi, mas, no meme, a mensagem humorística é a de que a situação inicialmente retratada vai acabar mal.

Outros já referenciaram o tal meme: em Porto Alegre, o vereador Valter Nagelstein já havia gravado um vídeo encenando, com sua família, uma morte por coronavírus. Na semana que passou, o presidente da Embratur fez uma montagem colocando o rosto de Jair Bolsonaro sobre o rosto de uma das pessoas que carrega o caixão. Quando li a manchete sobre isso, achei que era uma crítica ao presidente, mas que nada: a montagem era uma homenagem ao líder. Esse é o Brasil: enquanto a maioria da população (76%) defende as medidas de isolamento social, parte das nossas autoridades ri dos mortos (além de ser incapaz de entender um meme, o que configuraria um problema menor não fosse indício de limitada capacidade cognitiva).

Antes da pandemia - naquele mundo que agora parece pré-histórico - e ainda antes das últimas eleições, muitos de nós alertávamos: essa extrema direita fanática tem um desejo de morte. Hoje, os fanáticos mesmo gritam, dançam e celebram a morte em praça pública. Esse grupo que tomou a Avenida Paulista é ideologicamente o mesmo que vestiu camisetas com a imagem de um torturador: eles agora poderiam muito bem vestir uma camiseta em favor da pandemia.

As estatísticas estão disponíveis para quem quiser ver e mostram que ainda estamos apenas no começo. No Brasil, um quarto dos mortos estava fora de qualquer grupo de risco. Não temos testes suficientes, mas o aumento no número de mortes por problemas respiratórios pode nos dar alguma ideia da profundidade da subnotificação. Apesar de tudo isso, há quem acredite que estamos falando de uma gripezinha, ou que um milagre vai cair dos céus e resolver tudo sem nosso esforço. Dessas pessoas, a gente ainda pode se compadecer: estão, talvez, distantes da ciência ou desorientadas pelo medo.

Já as pessoas que saíram em carreatas pedindo que os outros - aqueles que não têm carro nem plano de saúde - voltem a se expor e arrisquem sua saúde precisam ser responsabilizadas. Quem, de dentro de seu carro de luxo, pede o fim da quarentena está em campanha pela morte dos que andam de ônibus e trabalham aglomerados; quem diz que o vírus mata apenas velhinhos está em campanha pela morte de idosos; quem lê que uma vítima tinha diabetes e decide culpar a diabetes em vez do coronavírus está em campanha pela antecipação da morte. Desejam a morte alheia e talvez não percebam que, ao mesmo tempo, enveredam por um caminho suicida.

Escritora, autora do romance Ruína y Leveza | JULIA DANTAS

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