sábado, 25 de abril de 2020


25 DE ABRIL DE 2020
CARPINEJAR

Os restos deliciosos



O que mais me encantava na infância era o direito a receber as sobras da panela. Só ganhava o privilégio o filho que permanecia na cozinha durante toda a preparação. Aquele que não aguentava o tempo inteiro perdia o desjejum.

Eu escorava os braços na mesinha de pedra, aguardando pacientemente o fim dos trabalhos. Azar das minhas brincadeiras e dos jogos no pátio, da bola de futebol e da pandorga, consumia a manhã sonhando com o sabor ainda quente dos doces e dos salgados. Nem me importava em queimar a língua, meu desejo crescia pela exclusividade, por ser o primeiro a provar a comida materna.

Parecia um cão esfomeado raspando o fundo da forma de brigadeiro, lambendo o chantilly da colher da batedeira, mastigando as crostas douradas do bolo, quebrando os cristais de açúcar do pudim. Eu avançava sobre a louça. Até facilitava enormemente a sua lavagem. Não queria perder nenhum restinho do meu lugar de destaque.

Eu me cortava com orgulho ao enfiar os dedos na lata de leite condensado aberta pela metade. Não reclamava de qualquer cicatriz que viesse do atrito temerário. A glicose recompensava o sangue.

A mãe pedia calma, dizia para não ter pressa, que nada iria sumir, sem saber como amansar a minha ansiedade festiva. Mas temia que um espertinho aparecesse na última hora exigindo a divisão dos bens, sem pagar com a contrapartida da vigília.

Nos aniversários dos irmãos, eu que me sentia mudando a idade, pegando, na nascente do óleo, os risoles e os enroladinhos de salsicha abraseados, antes de serem postos nas vasilhas forradas de guardanapos.

Tratava-se de um apetite próprio da felicidade, e apenas dela. Saciava a alegria de viver antes mesmo de forrar o estômago. O que explica o fato de, até hoje, a panqueca ser a minha refeição predileta. Porque ela permite a exuberância de massinhas extras, de separar o material que não será recheado de carne e queijo.

Ao filho que fica comigo perto do fogo da criação, merece o prazer do macio e delicioso excedente. Ele me repete quando pequeno, eu reencarno a minha mãe de avental e touca, e a linhagem se sucede nos segredos das receitas de família.

CARPINEJAR

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