sexta-feira, 5 de junho de 2020



05 DE JUNHO DE 2020
O PRAZER DAS PALAVRAS

Esposas

Aniceto O., um ilustrado leitor de Foz do Iguaçu, levanta uma questão assaz interessante: "Prezado professor, nasci e cresci aqui na fronteira com o Paraguai. Costumo usar muitas palavras do castelhano na minha fala diária, como sei que também acontece com meus amigos aí do Sul que vivem perto da Argentina ou do Uruguai. Há muito acompanho suas colunas e aprendi que o Português e o Espanhol são as duas línguas mais próximas da família latina, que nunca, desde a sua origem, deixaram de estar em contato, tanto aqui como na Europa, o que facilita a comunicação. Claro que nem sempre eles usam os mesmos nomes que damos para as coisas - nossa calça é o pantalón deles, nosso garfo é o tenedor, por exemplo, mas acho isso normal. Só estranho quando os dois lados usam exatamente a mesma palavra, mas para dizer coisas diferentes, como esposas, que é como chamam as nossas algemas. Isso tem algum sentido oculto?".

Caro Aniceto, as palavras, como as moedas, têm o valor que a elas atribuímos, e isso pode variar de um lado da fronteira para o outro - às vezes, até mesmo dentro da mesma comunidade linguística, como é o caso de Brasil e Portugal. Um exemplo famoso é o vocábulo propina, que já andou aparecendo numa coluna de muitos anos atrás (para quem não se deu conta, em breve o Prazer das Palavras estará chegando aos 20 anos de idade...). Na ocasião, um leitor atento como tu manifestou sua estranheza com a manchete lida num jornal de Coimbra que anunciava uma manifestação dos estudantes contra a nova tabela de propinas. 

Como nem os corruptos brasileiros chegaram à perfeição de tabelar o que cobram, nosso leitor descartou desde logo o significado habitual de suborno e foi pesquisar no Priberam, que é um bom dicionário português on-line: lá, na terrinha, propina é "quantia paga para frequentar um estabelecimento de ensino superior" (no final do verbete, uma rubrica nada honrosa informa que no Brasil significa "dinheiro ou bem que se oferece a alguém em troca de favor ou negócio lucrativo, geralmente ilícito". Eita, ferro!). O vocábulo original, vindo do Latim, sempre manteve a carga semântica de "pagamento": pagar uma bebida na taberna, ou gratificar alguém por um serviço bem feito, ou pagar taxas por documentos oficiais, ou pagar as anuidades escolares - sem esquecer comprar a conivência de um político corrupto - tudo isso faz parte do bufê que propina oferece. É simples: Portugal escolheu um prato, nós escolhemos outro.

O caso das esposas é semelhante, mas um pouco diferente... Isso, acredito, foi o que chamou tua atenção: o Espanhol dá a este termo tanto o significado de mulher casada quanto o de algemas, o que naturalmente levanta a suspeita de que os dois significados estejam indissoluvelmente relacionados na cabeça dos hispanofalantes. Misoginia, má-vontade para com as nossas caras-metades? Não vamos tão longe. 

Desde a origem latina, esposar significa "comprometer-se", "ligar-se por um vínculo", "amarrar-se", como dizem por aí. O casamento amarra, prende como algemas - claro que com "algemas de seda", como diziam os antigos romances escritos para mocinhas. Esta mesma ideia está presente - e bem escondidinha, aliás - no vocábulo cônjuge ("conje", para o vulgo), que vem da mesma raiz de jugo, aquela canga que junta os bois da carreta...

De qualquer forma, prezado leitor, estamos juntos: minha imaginação também se perturba quando vejo na internet do Uruguai anúncios de esposas inoxidables, esposas en el Mercado Libre ou de esposas importadas de Alemania.

Escreva com a Cíntia Moscovich - Ah, e um aviso oportuníssimo para todos aqueles que, como eu, acham que escrever a torto e a direito é uma das ocupações mais prazerosas que existem: a Cíntia abriu sua preciosa Oficina de Pequeníssimas Narrativas, um curso on-line para desenvolver, como ela própria diz, "formas breves, superbreves e megabreves". O curso começa em 17 de junho próximo, e você encontrará mais informações no endereço oficinasubtexto@gmail.com.

CLÁUDIO MORENO

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