Nabil Bonduki
Fim do isolamento desejado por Bolsonaro será um desastre
Ao entregar cestas básicas e equipamentos de proteção na favela de Heliópolis (Zona Sudeste de São Paulo), em uma ação coordenada pela associação local com recursos arrecadados em campanha de solidariedade, jovens de classe média se depararam com um fato chocante. Entre 20% a 30% dos moradores recusaram a oferta de máscaras, dizendo que “elas vinham da China e estavam contaminadas pelo vírus”.
Ao mesmo tempo em que a rede bolsonarista busca desacreditar a imprensa e agredir jornalistas, como fez ontem (domingo) em Brasília, por WhatsApp ela difunde informações descabidas, que prejudicam qualquer ação preventiva. Como um card, que circulou em Manaus, com uma imagem dos sepultamentos em vala comum na cidade, acompanhada de uma foto de Lula, com a legenda: “PT manda enterrar caixões vazios: estão enterrando caixões vazios para gerar pânico na população do Amazonas”.
São exemplos da dificuldade de enfrentar a pandemia em um país onde a mentira e o confronto se tornaram uma política de governo. Ao invés criar um clima de união nacional e de criar um gabinete de crise para formular uma estratégia sanitária e econômica para conter o avanço do coronavírus, o colapso do sistema de saúde e a crise social, o governo investe em um gabinete de ódio.
O país está à deriva, da saúde à política. Enquanto o novo ministro da Saúde fala que poderemos ter mais de mil mortos por dia, o presidente diz “e daí?”, estimula o contágio e promove crises políticas em série, que impossibilitam qualquer entendimento para enfrentar a situação.
A crise institucional, o confronto permanente e as informações desencontradas deixam a população confusa e atônita. O isolamento determinado por governadores e prefeitos é combatido pelo presidente, que se vale das dificuldades econômicas da população para buscar apoio a uma estratégia genocida.
As carreatas da morte, que voltaram às ruas no dia 1º de maio, em apoio ao presidente e criticando o fechamento do comércio, são uma das faces desse confronto. O impeachment do governador Dória foi protocolado na Assembleia e se tornou bandeira de luta desses fanáticos.
Isso não vai adiante, mas deixa consequências, que poderão ser nefastas. O precipitado anúncio do governador de São Paulo sobre a reabertura gradual do comércio a partir de 11 de maio, assim como o recuo de outros governadores e prefeitos na mesma direção, foi resultado dessa campanha estimulada pelo presidente.
Se a flexibilização for efetivada, seja pela pressão política seja pela falta de convicção de alguns governantes, a fila de caixões e o colapso do sistema de saúde irão crescer, afetando a capacidade de recuperação do país.
Para o ex-ministro da Saúde, Arthur Chioro, a situação epidemiológica é gravíssima. Para ele, respeitado médico sanitarista, o número de mortos pode alcançar entre 800 mil e 1 milhão de pessoas nos próximos meses, se o relaxamento da quarentena que vem sendo proposto for adiante. “Viveremos ainda cenas muito trágicas no país.”
Chioro afirma que, pela falta de testes, “a subnotificação mascara a realidade: o número de contagiados é muito maior do que os dados oficiais, com a taxa de mortalidade atingindo 7%. Os casos considerados leves e assintomáticos, que representam 85%, não estão contidos entre os casos confirmados”.
Ele recomenda que não se afrouxe o distanciamento para evitar uma explosão ainda maior de casos, pois isso vai levar ao aumento do contágio e tornarão as perspectivas de saída da crise mais distantes. O ex-ministro José Gomes Temporão concorda: “O confinamento é necessário”. E adverte que “o vírus não é democrático: vai afetar os mais frágeis, que vivem nas periferias.”
Tudo indica que a pandemia está muito longe de atingir o pico, inclusive porque o distanciamento físico está longe de ser efetivo. No dia 30 de abril, a taxa de isolamento caiu para apenas 46% em São Paulo, mas este é o índice médio. Em bairros mais periféricos, o isolamento é baixíssimo e ainda menor em determinados segmentos, como os jovens. Levantamento feito a partir de celulares mostrou que em distritos como Lageado (extremo da Zona Leste), o isolamento de jovens era praticamente inexistente.
A questão é que, além da desinformação bolsonarista e da pressão contra o isolamento, é enorme a dificuldade da população mais vulnerável “ficar em casa”, como já mostrei nas últimas colunas. As casas são pequenas, superlotadas e sem acesso fácil à internet. Muitos precisam sair para auferir alguma renda. Mas, além disso, é necessário que se crie uma consciência psicossocial da necessidade de isolamento.
A prevenção ao contágio exige uma mudança de comportamento social, questão que deveria estar no rol de preocupação dos governos para tornar mais efetivo o isolamento físico. Vera Paiva, professora do Instituto de Psicologia da USP e coordenadora de um projeto de prevenção à Aids, que agora se volta ao coronavírus, afirma que é necessário formular estratégias específicas para cada segmento social.
Usando sua experiência na prevenção à Aids, ela afirma que sem uma mudança de mentalidade, obtida através de um trabalho psicossocial, será difícil evitar que as pessoas passem a ter um distanciamento físico seguro para evitar a contaminação. A informação precisa considerar aspectos como a idade, a classe, a condição de moradia, a orientação sexual e a religião. Não adianta chegar na periferia com o mesmo discurso de “ficar em casa”, que pode funcionar na classe média.
Como o isolamento físico é, por enquanto, a única vacina para enfrentar o Covid 19, é necessário formular estratégias específicas para garanti-lo, evitando a flexibilização das medidas de enfrentamento à pandemia.
A situação exigiria um presidente com capacidade de liderança para lidar com a maior crise sanitária, econômica e social da história recente do país. Na falta disso, é necessário que se estruture uma forte articulação política capaz de coordenar as ações sanitárias em todo o país e de formular propostas para o pós-pandemia.
O ato de 1º de maio, promovido pelas centrais sindicais, com mensagem dos ex-presidentes FHC, Lula e Dilma e dos ex-candidatos a presidente Marina e Ciro, talvez seja um bom prenúncio nessa direção.
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