06 DE ABRIL DE 2019
MÁRIO CORSO
A fala escassa dos traumatizados
Por acaso, estávamos sós em um dia de férias. Atravessava, com meu sogro, o caminho do arco das praias de Piriápolis, no Uruguai. Teríamos uns seis quilômetros pela frente. Bom exercício para o entardecer.
De inopino, a conversa se fez densa. Sem razão aparente, Juan começou a falar de sua infância, de quando era chamado de János. Descemos abruptamente seis décadas. Falou-me da história de seus antepassados, das profissões que exerciam, de um curtume que seus avós tinham na Hungria.
Não era grande fortuna, mas garantia uma estabilidade. Lembrava de seus anos escolares, das proibições de circular e estudar que foram crescendo com ele, de seu irmão perdido, seu pai perdido, toda uma vida perdida. Falou daquilo que nunca falava.
Narrou a dor de ser ejetado para a América privado de família, patrimônio e história. Trazia somente a esperança, que nunca se realizou, de reencontrar os familiares. Apenas sua mãe sobreviveu, escondida em um porão de Budapeste. Sara chegou depois da guerra, prenha de lágrimas e sem uma moeda no bolso. Eu sabia algo dessas histórias, porém, naquele dia, ele tocou no pior calo: a traição.
O nazismo prosperava expropriando os perseguidos e aliciando cúmplices pagos com esses bens. Assim ocorreu à família de meu sogro. Quem ficou com o espólio foram os vizinhos, pessoas com quem conviviam antes do pesadelo antissemita. As famílias judias rumaram para o extermínio após serem denunciadas e roubadas por gente próxima. Eram expulsas em nome da purificação racial. Se os judeus eram repulsivos, seus pertences, aparentemente, não eram. O convívio, outrora afável, guardava veneno em seu cerne. Mas também continha antídotos: os funcionários do curtume arriscaram a vida para salvar sua mãe.
Essa conversa foi uma exceção. Ele pouco contava do passado. Raras janelas se abriam, em circunstâncias pouco claras, nas quais deixava escapar fragmentos. Sem novidades. Quem passou por algo semelhante mal consegue falar. Nesses casos, a verdade chega em gotas.
Quando alguém facilmente abre seus traumas, ou não são traumas, ou o trauma não é bem esse. O sofrimento extremo é envergonhado, econômico em palavras. Fatos doídos tendem à escuridão. Ao roubar a dignidade, os seres queridos, ou o sentido da vida de alguém, abre-se um rombo por dentro. Esse oco gera uma gravidade que suga as palavras e devora as boas memórias. O horror emudece.
A conversa fortaleceu nosso laço. Senti-me honrado por meu sogro partilhar, ao menos uma vez, as doídas farpas do que lhe era possível contar. Mesmo que parida com dor, a narrativa dos absurdos sofridos devolve a dignidade a quem a profere.
MÁRIO CORSO
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