31/12/2016 e 01/01/2017 | N° 18729
LYA LUFT
Para não dizer adeus
Publiquei há alguns anos um livro de poemas com esse título, e, porque gosto dele, roubo-o de mim mesma para este artigo. Vivemos, entre perdas e ganhos (pra falar de outro livro, pois livros são o que eu faço), dizendo alô e adeus.
Uma gangorra esta vida, altos e baixos, médio e horrível ou glorioso.
Este fim de ano é para muitos o único momento em que filosofamos um pouco, construindo objetivos, fazendo juras falsas de melhorar aqui e ali, falar mais com os filhos, procurar mais os pais, retomar aquela amizade, pagar aquela velhíssima conta, que pode ser monetária ou emocional, fazer terapia porque andamos muito loucos, ou admitir e curtir essa nossa pequena insanidade porque afinal “eu sou assim e ninguém tem nada com isso”. Prometemos a nós mesmos saber mais das notícias do mundo e do país, pra não sermos tão alienados, ou nos propomos paz de espírito e espaços de alegria, tentando não ver todas as notícias do dia, da noite e da incansável madrugada.
Mas eu aqui falo de outros adeuses e outras perdas: a do tempo, desperdiçado sentindo raiva, inveja, sendo intolerantes, difamando, mentindo, criticando com azedume, passando por cima do outro, esquecendo quem nos ama de verdade, humilhando para nos sentirmos superiores, sendo bobalhões ou cruéis, quando podíamos estar curtindo bons e belos momentos, preciosos na bizarrice dos tempos atuais.
Falo da perda da juventude, que a grande parte das pessoas ameaça, atormenta, sufoca e faz adoecer. Uma amiga minha corria pela sala desesperada, mãos na cabeça, quando fez cinquenta anos: “Como pôde acontecer isso, como pôde?”, e em lugar de curtir a maturidade, em muitas coisas mais gloriosa do que a confusa juventude, sofria uma dor sem consolo, embora fosse uma bela mulher, cheia de energia e esperança.
Outra conhecida tanto começou a se repuxar para enganar o tempo, os outros e a si mesma, que aos sessenta havia perdido não a juventude que se transforma em maturidade e velhice, mas a si mesma: olhava o espelho e nada mais nela era dela. Em alguns anos, por crueldade talvez dos cirurgiões aos quais recorreu em série, parecia uma máscara feia, distorcida, e a gente tinha vontade de sentar ali no meio-fio e chorar. Só restavam nela a voz e os olhos de um cinza singular.
Também damos adeus a pessoas, o que é o pior: as que vão viver longe, as que se desprendem de nós, como acontece porque o afeto ficou ralo demais ou o “longe” chama com muito fervor, passam para um limbo de onde às vezes emergem, como de um nevoeiro, e dói um pouquinho, e pensamos “mas o que será que aconteceu?”. E damos adeus de verdade aos amados que enveredam pelo jardim de neblina e silêncio que chamamos morte, de onde não vão retornar. Uma vez ou outra, parecem nos mandar recados: o som dos passos no corredor, aquela voz, o jeito de falar, de virar o rosto, de estender a mão, de nos olhar.
Com o tempo, tantos adeuses fazem da alma uma espécie de renda – não necessariamente feia, mas intrigante: porque podemos celebrar com espumante ou lágrimas, ou risos bons, o movimento dessa engrenagem de que somos parte, e que, apesar dos adeuses, se chama, mais do que morte, vida.