segunda-feira, 4 de maio de 2009


MOACYR SCLIAR

Espaço vital

Religioso, considerava-se preparado para partir desta para a melhor, como declarava aos amigos e à mulher

No condado inglês de Houghton Regis, o Conselho de Funerais decidiu cobrar 50% a mais para enterrar pessoas muito gordas. "O fundamento é que os obesos ocupam mais espaço", declarou à Folha o conselheiro Steven Oliver.

A regra começou a vigorar em março. Em vez da tarifa normal de ì 129 (R$ 415) o sepultamento de obesos custa ì 194 (R$ 625). Cotidiano, 27 de abril de 2009

DURANTE 53 anos William e Susan haviam vivido juntos. Uma vida tranquila, pacata, mas feliz. Nisso ambos estavam de acordo: tanto quanto um casal pode ser feliz, eles eram felizes.

Mas então William adoeceu, uma doença cardíaca grave, e aí ficou claro para ambos que, muito breve, ele poderia despedir-se da existência. O que enfrentou sem mágoa: homem religioso, considerava-se preparado para partir desta para a melhor, como declarava aos amigos e à mulher. Não imaginava, porém, o dilema que o destino lhe reservava.

Uma manhã notou que Susan parecia muito perturbada. Da cama, de onde agora não mais saía, interrogou-lhe a respeito. Ela vacilou, obviamente angustiada, mas acabou contando: tinham um problema, os dois. Melhor dizendo: ela teria um problema.

O Conselho de Funerais do condado tinha introduzido uma nova regra: o enterro de obesos custaria mais caro, iria de ì 129 para ì 194. A William, que apesar da doença, pesava 132 kg, essa regra inevitavelmente se aplicaria. Ora, eram pobres, eles, muito pobres. Susan já tinha reservado as ì 129 para o funeral, mas de onde obteria o resto?

Por uns momentos ficaram em silêncio. "O que quer você que eu faça?", perguntou o marido, por fim. "Uma dieta", disse ela. Se William perdesse peso, poderia enquadrar-se na categoria de cadáver normal. Ele abanou a cabeça.

Não, não faria dieta de jeito nenhum. Em primeiro lugar porque, segundo os prognósticos médicos, dificilmente teria tempo para isso: o óbito certamente ocorreria antes. Em segundo lugar, gostava de comer. Era um dos poucos prazeres que lhe haviam restado, que a doença, surpreendentemente, poupara.

Perdera as forças, perdera a disposição, mas não perdera o apetite, algo que agradecia a Deus. Por último, havia a Bíblia, da qual era leitor assíduo.

Ali estava, em Daniel 5:27, a frase com que o profeta, interpretando a misteriosa inscrição surgida na parede do palácio, anunciara a condenação do rei: "Foste pesado na balança e encontrado muito leve". Muito leve, não muito pesado, sublinhou ele.

A esposa ainda ponderou que essa insustentável leveza do monarca resultava da falta de virtudes, mas William era muito mais pela interpretação literal: peso não é pecado, ao contrário.

O fato, porém, é que amava a mulher, e não queria, naqueles derradeiro período de suas vidas, deixá-la com uma lembrança triste, amarga. No mesmo dia anunciou que estava começando uma dieta ultrarrigorosa. "Prometo que meu caixão irá flutuando para o cemitério", disse, bem-humorado.

Ela não respondeu, mas abraçou-o, em prantos. E ali ficaram, juntos, em silêncio. Mas uma pergunta, interessante pergunta, agora lhe ocorria: será que para entrar no céu são Pedro pesava as pessoas? Uma indagação que guardaria para si, obviamente. Não queria sobrecarregar a mulher com o peso de sua ironia.

MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

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