sábado, 9 de maio de 2009



De onde vem a inteligência

Os cientistas começam a desvendar os fatores que tornam o cérebro mais eficiente. O que podemos esperar dessas descobertas
Marcela Buscato. Com Ana Aranha e Rafael Pereira

O ENIGMA DO GÊNIO

Amostras do cérebro do físico Albert Einstein conservadas para pesquisa. Há 54 anos, os cientistas tentam decifrar as origens de uma mente brilhante O americano Thomas Harvey disse ter se sentido sortudo ao deparar com o corpo do físico Albert Einstein em cima da mesa de autópsias do Hospital de Princeton, nos Estados Unidos.

Não se tratava apenas da empolgação de um patologista – esses detetives da medicina que a cada nova necropsia procuram pelas causas de uma morte. Naquela manhã de 18 de abril de 1955, sete horas depois de Einstein morrer, aos 76 anos, em decorrência de um aneurisma abdominal, Harvey vislumbrou a possibilidade de uma descoberta histórica.

Sem a autorização em vida de Einstein ou de sua família, ele abriu o crânio de seu “paciente” mais ilustre. Sugou o liquor do cérebro pelo nariz e com uma das mãos envolveu o bolo de massa cinzenta que revolucionara a ciência ao redefinir os conceitos de espaço e tempo. Harvey cortou as fibras que o prendiam ao corpo e o suspendeu. Acreditava que o cérebro de 1,2 quilo em suas mãos – mais leve que o da média da população – responderia à pergunta que já desafiava pensadores 400 anos antes de Cristo. Qual é a essência da inteligência?

Cinco décadas depois do dia de sorte de Harvey, o cérebro de Einstein – dividido em 240 finas fatias – flutua em dois potes de vidro no Centro Médico de Princeton. Durante todos esses anos, Harvey dedicou-se a enviar alguns desses pedaços a vários especialistas. Caberia a eles investigar o cérebro de um gênio e divulgar para o mundo a receita de tanta inteligência. Alguns deles arriscaram publicar seus achados.

O primeiro: a região encarregada da habilidade matemática, chamada lobo parietal, era 15% maior no cérebro de Einstein. A segunda conclusão: as circunvoluções, aquelas dobras que dão uma aparência rugosa ao cérebro, eram distribuídas em um padrão que aproximava os neurônios, facilitando a transmissão de estímulos nervosos. A terceira descoberta: os neurônios eram mais bem alimentados. Einstein tinha uma proporção maior de células fornecedoras de nutrientes em seu cérebro.

O cérebro é como uma estrada. Em algumas pessoas, asfaltada. Em outras vezes, feita de paralelepípedos

Foram constatações curiosas, sem dúvida. Mas pouco revelaram sobre o segredo da genialidade. Como garantir que as particularidades encontradas no cérebro de Einstein foram responsáveis por sua inteligência fora do comum? Há poucos cérebros tão geniais quanto o dele – e um número muito menor chega às mãos dos pesquisadores.

Sem base de comparação, não há como provar cientificamente que um cérebro com as mesmas características faria de alguém um gênio. Um fim triste para o bem mais precioso de Einstein e para o ato ousado de Harvey – que morreu em 2007, aos 94 anos, dizendo-se cansado da responsabilidade de ser o guardião de um cérebro tão privilegiado.

Os cientistas de hoje podem não contar com uma matéria-prima nobre como essa, mas ironicamente estão mais perto de revelar a essência da inteligência do que Harvey jamais esteve. Eles têm acesso direto a algo que confere brilho a um cérebro: as modernas técnicas de ressonância magnética. Essas técnicas, desenvolvidas na última década, colorem as regiões ativadas durante a realização de cada tarefa. E mostram a intrincada rede de interações que produz a inteligência.

O psicólogo americano Richard Haier, da Universidade da Califórnia em Irvine, conseguiu descrever a rota de um pensamento dentro do cérebro usando as imagens obtidas nesse novo tipo de estudo (confira a ilustração). “Os diferentes níveis de inteligência estão relacionados a quão bem as informações percorrem esse caminho”, afirma Haier.

“Em algumas pessoas, elas podem pegar atalhos ou viajar a uma velocidade maior.” É como se o cérebro fosse uma estrada. Em algumas pessoas, ela seria cheia de ramificações, pavimentadas com asfalto da melhor qualidade. Em outras, o pensamento andaria por uma trilha longa, feita com paralelepípedos.

No mundo da neurociência, o asfalto corresponde a um maior número de conexões entre os neurônios, mais substâncias químicas para transportar as informações pelo cérebro e mais vasos sanguíneos para levar alimentos e oxigênio para as células nervosas. Os paralelepípedos correspondem a cérebros em que esses fatores aparecem alterados, acarretando um desempenho pior.

Uma série de estudos publicados nos últimos dois meses colocou à prova a teoria da estrada. E comprovou que aspectos como rota e qualidade do asfalto fazem a diferença. O neuropsicólogo alemão Jan Willem Koten, da Universidade Aachen, mostrou que as pessoas usam estratégias mentais diversas para executar a mesma tarefa. E que algumas dessas táticas são, de fato, mais eficazes: se traduzem em pensamentos velozes e certeiros.

No estudo, os voluntários que usavam áreas do cérebro encarregadas do processamento visual e espacial para decorar uma sequência de dígitos tinham mais facilidade para lembrá-la que as pessoas que empregavam uma região ligada à linguagem. Paul Thompson, um neurologista da Universidade da Califórnia, descobriu que a qualidade do revestimento dos neurônios está diretamente ligada ao nível de inteligência.

Quanto mais grossa a camada de mielina, um tipo de gordura que reveste os neurônios, mais rapidamente a informação é transmitida entre as células nervosas. Na Universidade McGill, no Canadá, os cientistas constataram que crianças e adolescentes com algumas áreas do cérebro mais espessas tinham um desempenho melhor em testes de inteligência. Elas teriam um maior número de conexões entre os neurônios.

Agora, os pesquisadores estão começando a investigar o que está por trás dessas diferenças. O que faz com que algumas pessoas usem estratégias mentais mais sofisticadas que outras? Ou tenham um revestimento mais espesso de mielina? Ou mais conexões cerebrais? A resposta está escrita no genoma, a sequência de códigos químicos que tornam cada pessoa tão única. Essas variações na rede neural seriam determinadas pelos genes.

Isso significa que a inteligência é em boa parte transmitida dos pais para os filhos. Em seu estudo, Koten, da Universidade Aachen, descobriu que gêmeos idênticos, que compartilham os mesmos genes, têm mais chances de usar a mesma tática mental para decorar a sequência de números do que seus outros irmãos, que compartilham em média 50% dos genes.

Outra pesquisa da Universidade da Califórnia mostrou que as regiões cerebrais que controlam as habilidades de linguagem e leitura são iguais em gêmeos idênticos. E alguns levantamentos sugerem que filhos adotivos costumam desenvolver um Q.I. (quociente intelectual) mais próximo ao dos pais biológicos, com quem não mantiveram contato, que ao dos pais adotivos, com quem convivem.

Esses indícios de hereditariedade e a criação de novos métodos para analisar milhares de sequências de DNA simultaneamente desencadearam uma busca pelos genes da inteligência. Os geneticistas já anunciaram a descoberta de pelo menos cinco. Sem dúvida, um avanço.

Mas também uma amostra de quão difícil é determinar as causas da inteligência. Entre todos os genes descobertos, nenhum tem uma influência arrebatadora sobre o desempenho intelectual. “É provável que existam muitos genes que interfiram no desempenho, cada um com uma influência pequena”, afirma o psicólogo americano Robert Plomin, do King’s College London.

Em suas pesquisas, Plomin confirmou esses caprichos da genética. Ele empreendeu a maior busca já feita por genes da inteligência. Analisou o DNA de 7 mil crianças, usando uma técnica que procura por até 500 mil marcadores genéticos de uma só vez. E o gene mais influente que conseguiu encontrar, o IGF2R, determinava uma variação de apenas 0,4% na pontuação de testes de inteligência. Na Universidade de Washington, nos Estados Unidos, uma equipe de pesquisadores diz ter descoberto um gene, o CHRM2, com influência maior.

A diferença de Q.I. entre uma pessoa que tenha todas as versões do gene que influenciem negativamente as habilidades cognitivas e alguém que carregue as mutações com influência positiva poderia chegar a 20 pontos. Os cientistas americanos afirmam que é muito difícil comprovar estatisticamente esse dado porque há poucos casos conhecidos de pessoas com essas configurações genéticas extremas.

Entender o papel exato desses genes é outro desafio. Eles parecem ter outras funções além de influenciar na habilidade de raciocínio. O caso mais intrigante é dos genes DARP-32 e DTNBP1. Eles são encontrados em pessoas com esquizofrenia, um transtorno psiquiátrico caracterizado por alucinações, e, por isso, são associados à doença.

Estudos recentes sugerem que eles também podem ter alguma ação sobre a inteligência. Portadores de uma versão específica do DARP-32 processariam de forma mais eficiente as informações no córtex pré-frontal, o que melhoraria o desempenho intelectual. Já as pessoas com uma mutação específica no DTNBP1 teriam dificuldades de raciocínio. Ainda não se sabe por quê.

Ao mesmo tempo que avançam as descobertas sobre a influência da genética, também avançam os estudos sobre o papel do meio ambiente na formação da inteligência. “O nível de inteligência de uma pessoa é resultado da interação entre genes e fatores ambientais”, afirma o psicólogo Ian Deary, diretor do Centro de Epidemiologia Cognitiva da Universidade de Edimburgo, na Escócia. Até beber leite materno pode ser decisivo.

Pesquisadores britânicos sugerem que, em crianças com determinada versão do gene FADS2, a amamentação pode elevar o Q.I. em até 7 pontos. Esse gene estaria relacionado à transformação de nutrientes da gordura do leite importantes para o desenvolvimento do cérebro.

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