sábado, 2 de maio de 2009



03 de maio de 2009
N° 15958 - MOACYR SCLIAR


Mentiras consentidas

Os estrangeiros que vêm ao Brasil frequentemente passam pela experiência. Eles conhecem algum brasileiro, o contato é amável, caloroso mesmo, e em geral termina com a frase: “Aparece lá em casa”.

No dia seguinte, lá está o visitante, batendo à porta do potencial anfitrião, para surpresa e constrangimento deste. Porque, claro, o convite não era para valer. Era algo como uma frase que brota automaticamente dos brasileiros, e que os sociólogos e psicólogos enquadram na categoria das chamadas mentiras consentidas. Por que consentidas? Porque são tacitamente aceitas por todos nós, os nativos desse país. E sistematicamente causam surpresa àqueles que vêm de fora.

Mentiras consentidas são comuns entre nós. “Meu Deus, como você está bem!”. Mas a pessoa a quem dirigimos essa frase não está tão bem assim. Padece de alguma doença. Envelheceu. Saiu-se mal numa cirurgia plástica. É isso o que vamos dizer? De maneira alguma. Preferimos o “Meu Deus, como você está bem!” e ficamos em paz conosco mesmos.

Outro exemplo, este do sociólogo Roberto DaMatta: um amigo nosso escreveu um livro. Nós não lemos esse livro, ou então lemos, mas não gostamos. E aí o autor nos pergunta o que achamos de sua obra. Jamais seremos francos. Diremos algo como “É bem bom”, ou: “Funciona”. O que quer dizer isso, “funciona”? Provavelmente nada, mas nos livra de uma situação embaraçosa.

No Exterior é diferente. É famosa a frase do duque de Gloucester para o historiador Edward Gibbon, quando este levou-lhe mais um volume de sua obra Declínio e Queda do Império Romano: “Another damned, thick, square book! Always scribble, scribble! Eh, Mr. Gibbon?”

“Outro maldito, grosso, quadrado livro! Sempre escrevinhando, escrevinhando! Não é, Mr. Gibbon?”. Notem que a intenção do duque não era ofender o autor; só dizia o que estava pensando, coisa que para um nobre inglês da época deveria parecer absolutamente normal.

Não, nós não somos o duque de Gloucester. Somos brasileiros, e a ficção sempre fez parte de nossas vidas, até como forma de defesa contra a pobreza, a desigualdade, a injustiça social. Deus é brasileiro? Talvez não seja, mas para um morador de favela essa pode ser a única esperança. É por isso, aliás, que usei a palavra “ficção”, e não “mentira”.

A mentira sempre envolve um componente de sacanagem. A ficção, não. A ficção, e todo escritor sabe disso, é uma outra dimensão da verdade, é a verdade como ela deveria ser: toda história, idealmente, termina com um final feliz: “casaram e foram felizes para sempre”. Será que é esta a regra para todos os casamentos?

A mentira consentida também não é a mentira piedosa, que os médicos usavam muito no passado: “Isso não é nada, vai passar”. Muitas vezes não passava, muitas vezes a situação do paciente se agravava. Resultado: nos Estados Unidos, os médicos começaram a ser levados aos tribunais, acusados de ter ocultado (e a razão para isso era secundária) a verdade. Hoje em dia um médico americano não dirá ao paciente que “isso não é nada, vai passar.”

Sua resposta será algo como: “Suas chances de recuperação com a cirurgia são de 22,5%, mas há um risco de óbito da ordem de 5,6%. Se usarmos o tratamento clínico, a possibilidade de melhora é de 21,3%, com efeitos colaterais surgindo em 12,3% dos casos”. Muito diferente, portanto, do “aparece lá em casa”.

Ao fim e ao cabo, porém, alguma mentira (os políticos que o digam) é inevitável. Desde que a gente não tenha o nariz do Pinóquio, tudo bem.

A Raquel S.da Silva, de São Leopoldo, manda dois nomes que condicionam destinos: o do Dr. Gino, que é ginecologista e obstetra, e o Dr. Máximo Bulla (muito farmacêutico deve ter inveja dele).

A Marta Zanetti, da gloriosa, poderosa e alterosa L&PM lembra-me que Valsa com Bashir (em cartaz em Porto Alegre) não é só filme, é também um belo livro em quadrinhos, publicado pela L&PM. Mandou-me um exemplar, e de fato é obra-prima. O prof. Valdo Barcelos (UFSM) gostou do texto que escrevi sobre sapatos e mandou-me uma crônica sua sobre o tema. Trecho: “Os sapatos são, de certa forma, a maneira de dar seguimento aos nossos impulsos. São eles, literalmente, que nos ‘levam para frente’.

Podem ajudar, portanto, a deixar o passado para trás e nos encaminhar para o futuro”. A propósito do mesmo texto escrevem-me Maria Waleska Van Helden e Fabiane Severo, do grupo de danças GEDA de Porto Alegre; estão preparando uma obra coreográfica baseada na concepção freudiana dos pés como símbolo fálico e dos sapatos como símbolo feminino.

Agradeço as mensagens da dra. Mariza Montoya, de Miriam Fuhr, Maria Morales H. Dias, Zaneida Abbot, Olides Canton, prof. Duilio de Avila Bêrni, Gustavo Schlottfeldt, Viviane Niedersberg (aluna da Ulbra, ela aborda a difícil situação daquela universidade), Douglas de Morais Garcez, Lilian Pinto e Jorge Ritter

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