quinta-feira, 1 de novembro de 2007



01 de novembro de 2007
N° 15405 - Leticia Wierzchowski


Um vazio na minha janela

Há quem diga que uma casa não tem alma, é apenas um invólucro de cimento e tijolos dentro do qual a vida se desenrola. Mas não. Uma casa é um corpo e, por corpo, não pode ser descartado sem que haja alguma morte.

Porém, creio que existem certas casas que não querem morrer. Há tanta vida dentro delas! Não se pode matá-las nem tampouco esquecê-las - elas vivem em nós como a mais tenra memória: somos uma rua, um quarteirão, uma cidade; somos o espaço onde elas habitam, assim como delas são os poemas do Quintana.

Essas são as casas da nossa infância, aquelas que nos acompanham em sonhos pela vida afora A casa onde crescemos vai embora com a gente, viva num espaço para além da matéria, o mundo das nossas recordações.

Por que falar de casas assim numa crônica de jornal? Porque da minha janela acompanhei o êxodo de duas famílias na ruazinha atrás da minha. Foram embora há algumas semanas, deixando para trás duas casas órfãs dos quatro meninos e dos seus risos, e também órfãs do cachorro cor de mel e do ruído das bolas de futebol quicando nas manhãs de sábado.

Foram embora da minha janela e das minhas tardes de escritura, quando, entre uma página e outra, eu espiava aqueles meninos crescerem nos seus jardins contíguos.

Agora vejo somente o esqueleto daquilo que um dia foram duas casas cheias de vida e de infância, e as árvores do quintal fazem sombra para ninguém.

Dentro em breve, eu o sei, um tapume vai lacrar para sempre esse espaço: o menininho loiro cujos primeiros passos eu acompanhei da minha janela foi correr em outras ruas.

Seu quintal vai virar uma garagem de concreto, e sobre as entranhas daquilo que um dia foi a sua casa, erguer-se-á um prédio de muitos andares - outros lares eu sei, posto que eu mesma moro num desses desajeitados edifícios que proliferam pela cidade.

Mas me dá pena. Nunca mais vê-los colher pitangas na primavera, nem ouvir os latidos do labrador quando o dono chegava do trabalho ao anoitecer.

É a verticalização da nossa cidade, esse monstro incontrolável que engole tudo que já foi um dia - nos próximos meses, o único ruído que eu ouvirei da minha janela vai ser o som das máquinas escavando o terreno para fazer as fundações de um novo prédio cuja existência já lamento.

Os meninos foram embora, e eu me consolo com pouco: suas casas ainda vivem, quando eles fecham os olhos e dormem.

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