sábado, 17 de junho de 2023


17 DE JUNHO DE 2023
CARPINEJAR

Uma infância de abrigo

Eu usei abrigo a minha infância inteira. Ou abrigo escolar, azul, com as tiras brancas ao lado da calça, ou abrigo esportivo, com o moletom completando a aparência monocromática.

Era uma roupa coletiva, indicando que eu pertencia a um grupo social. Ou me tornava parecido com os meus colegas, ou parecido com os meus irmãos. Não me desvencilhava em nenhum momento dos círculos gregários da família e da escola.

O abrigo gerava constrangimentos como uma segunda pele, com aquele pano muito colado em minha carne. Não podia ter pensamentos impróprios. Funcionava como um detector de desejos na puberdade.

Lembrava um cinto da castidade recomendado pelo Vaticano. Todos descobriam as minhas vontades e fantasias a olho nu. A transparência incomodava, a vulnerabilidade atrapalhava. A facilidade que qualquer colega tinha de baixar a minha calça em público, para me zombar, terminava me atordoando, pondo-me em pânico, ainda mais sendo tímido. Não existia como me distrair. Mergulhava num estado de permanente fiscalização de quem estava ao meu lado.

O bullying não dava trégua. A escola não inspirava segurança. Todo trapaceiro na turma desfrutava da chance de rir de mim e mostrar o estado de minha cueca para as meninas. Espécime de avental gigante, tampouco permitia combinação de cor. Surgia pronto, sem mediação de complemento. O tênis branco sobrava, chamando atenção indevida aos pés de pato.

Afora o vexame das manchas de pasta de dente, que surgiam habitualmente pela pressa na hora de me aprontar e geravam círculos borrados no meu peito, verdadeiros alvos para o aviãozinho de papel.

Só morria o abrigo quando o elástico se soltava. Rasgos nos joelhos nunca traziam o fim da peça, porque recebiam remendos de couro. Vivia sob a ditadura do conjuntinho básico. Não havia o cinto para confirmar o crescimento da cintura pelo número de furos.

Vestia um saco para acordar, assim como o pijama representava um saco para dormir. Não restava espaço para estabelecer a minha singularidade, demonstrar o meu temperamento e elevar o ânimo trocando de figurino.

Tenho certeza de que abandonei a infância e nasci para a individualidade quando ganhei a minha primeira calça jeans, aos 13 anos. Era uma nova forma de enxergar o corpo - juro que a impressão foi de que eu degustava a liberdade pela primeira vez na vida.

O tecido me deixava à vontade, modelava as pernas, fazia volume. O corpo não ficava escancarado como no abrigo. Mudei até a minha atitude para as fotos, não mais me escondendo no fundo, atrás das cabeças dos outros.

O jeans criou o meu guarda-roupa, as possibilidades, as misturas, a indecisão do que colocar, o olhar mais demorado no espelho, o enamoramento do tempo. Veio a vaidade, veio o casaco de couro, veio o capricho com as camisas, veio o cuidado com os acessórios.

Foi quando finalmente troquei as gavetas pelos cabides, quando desafiei o certo pelo duvidoso, quando passei a abusar da criatividade. O jeans desencadeou a vontade de comprar as próprias roupas, de frequentar as lojas sozinho, de conhecer o recato das cortinas dos provadores, de economizar a mesada para me arrumar melhor.

Despertou em mim a ambição de ter uma personalidade diferente dos demais e de assumir a responsabilidade pelos meus caminhos, certos ou errados, cafonas ou elegantes. Consagrou a minha identidade. Eu estava pronto, enfim, para me perder no mundo com as minhas decisões.

CARPINEJAR

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