terça-feira, 23 de outubro de 2018


23 DE OUTUBRO DE 2018
CARPINEJAR

Fake news


Com o tempo, seus afetos acham que você deseja algo e só lhe oferecem aquilo de aniversário. Para não errar ou porque acham que você já tem tudo.

Na minha infância, eu só recebia bolas de futebol. Na minha vida adulta, eu só recebo garrafas de uísque.

O detalhe é que nem bebo, não sei como foi espalhada a notícia. Talvez os amigos mantenham a ideia de que todo poeta é boêmio e faz os seus versos de madrugada mexendo com o dedo indicador o gelo no fundo do copo. Eu, pelo contrário, escrevo de manhãzinha com chimarrão e apartado de qualquer alucinação ébria. Amo a sobriedade dos galos cantando e a luz chegando devagar às árvores, do breu ao amarelão.

O problema é que não há mais como conter a boataria, a fake news a meu respeito.

Hoje completo 46 anos e não guardo nenhuma ansiedade para os presentes das próximas horas. Será mais um engradado de uísque das mais diferentes fontes. E ainda preciso sorrir e achar fundamental. O uísque unicamente envelhece ainda mais o presenteado com seus doze anos, vinte e quatro anos, trinta e seis anos de barril.

Lá virão as sacolas com as caixinhas e a frase tradicional:

- Espero que goste. Me falaram que é o seu preferido.

Não posso dizer a ninguém, por educação, que as garrafas apenas me dão trabalho na faxina, de passar paninho nelas e mudá-las de lugar para tirar a poeira.

Eu me sinto atrás de um balcão de uma loja de bebidas ou no free shop da fronteira, com os mais sofisticados rótulos. Estou com 30 marcas lacradas e acumuladas na minha estante, herdadas na última década, arsenal que poderia satisfazer uma festa de casamento para 200 pessoas.

Enquanto os meus amigos me presenteavam com uísque, eu pensava que tinha como contornar a situação e frear o ímpeto alcoólico deles para cima de mim. Uma hora cansariam e eu passaria a ganhar gravatas. O constrangedor é que a falsa predileção atingiu o seio familiar: os meus tios começaram a me dar, os meus primos começaram a me dar, os meus irmãos começaram a me dar.

A pá de cal da história aconteceu na última festa, quando até a minha mãe veio feliz da vida com o previsível regalo:

- Demorei a descobrir que você adora mesmo é uísque. Nem mais a mãe, Brutus.

CARPINEJAR

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