quinta-feira, 18 de outubro de 2018



18 DE OUTUBRO DE 2018
CLÓVIS MALTA

Essas cicatrizes da alma

Se tem algo que realmente identifica quem está sintonizado com nossos tempos loucos são as tatuagens.

Podemos nem vê-las num primeiro momento. Muitos as ocultam, como parte do mistério. Mas, aí, basta um movimento delicado do cabelo e a nuca se desnuda com toda a sua magnificência. Podemos perceber, então, um minúsculo ponto e vírgula a indicar esperança, a luta silenciosa para superar o carma de episódios depressivos. 

Ou, quem sabe, um botão da blusa se abre entre os seios e salta o símbolo da sobrevivência, denunciando que essa pessoa tão linda, tão doce, tão indefesa já sofreu algum tipo de violência sexual. A manga sobe e constatamos um bíceps preso com arame farpado, sugerindo sofrimento. O pedal da bicicleta se move e aparece um motivo asteca, remetendo a uma outra época, uma outra forma de levar a vida, supostamente mais leve que esta.

Nem tudo no mundo é dor, e há também as flores, incluindo a de lótus, os pássaros, as borboletas que surgem dos recônditos mais imprevisíveis. Há uma profusão de rostos, de símbolos místicos, o nome de pais, de filhos, o do amor que se foi e deixou a marca funda, para sempre, o do atual. Há as citações, os trechos de livros, de músicas que já nem curtimos mais, as localizações geográficas de quem perambula sem roteiro pelo mundo, antigos sinais de pactos secretos entre amizades desfeitas, que o tempo vai se encarregar de excluir da memória, assim como o vento apaga as pegadas na areia.

E tem, é claro, os "Corações de mãe/ Arpões, sereias e serpentes/ Que te rabiscam o corpo todo/ Mas não sentes", eternizados por Chico Buarque. Expostas ou não, cada uma dessas chagas guarda uma história. No final, tudo se revela, nem que seja na intimidade.

Que belas e emocionantes são essas manifestações na carne viva. Ficam ainda mais abençoadas quando o tema brota de uma inquietação e é executado com amor. Não importam as motivações, mas os resultados. O que há algum tempo era hábito de homem primitivo, depois de piratas, de marinheiros, de prisioneiros, de prostitutas, de artistas, transformou-se numa forma de demonstrar que o corpo é nosso, que pode até ser lindo, mas precisa dessas inscrições feitas a agulha e tinta para se afirmar como único, a revelar sua própria trajetória sob a forma de imagens e palavras, muitas vezes em caracteres indecifráveis.

Agora imaginem, que maluquice, um encontro, digamos assim, na Redenção, em Porto Alegre. Um encontro no qual todo mundo possa expor suas tatuagens ao mesmo tempo. Algo como uma manifestação gigante de seres humanos transbordando arte ao vivo nas obras-primas que são seus próprios físicos. Uma síntese das alegrias e das dores. Um registro vago das vivências de sofrimento e de avanços na autoestima.

Seria meio louco, seria um tanto improvável, mas também libertador. Esses seres humanos com inscrições têm muito a nos ensinar, pois são como um livro aberto contra a hipocrisia. Os tatuados esbanjam essa coragem admirável de se exporem por inteiro, exibindo sem pudor suas marcas que mais parecem cicatrizes da alma, gravadas para sempre, enquanto houver vida, no que a contém.

CLÓVIS MALTA

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