sexta-feira, 19 de outubro de 2018


19 DE OUTUBRO DE 2018
DAVID COIMBRA

Nosso problema é de filosofia, não de economia

Por que você deve fazer a coisa certa? Por que você não pode matar uma pessoa que o incomoda ou roubar o que deseja?

Digamos que você tenha certeza de que não será punido. O que o impede de tomar o que quiser e se comportar como bem entender?

Antigamente, a resposta para essa pergunta era: porque Deus proíbe. O próprio Senhor havia determinado o que era certo e o que era errado, com Seu dedo de fogo imprimira as tábuas da lei e as entregara ao povo, que agora sabia o que lhe era vetado: roubar, matar, desejar a mulher do próximo etc. Se o homem infringisse a lei, seria castigado. Talvez aqui mesmo, na Terra, com alguma desgraça em vida. Mas, se o criminoso atravessasse toda a existência feliz e intocado, alguma pena terrível certamente o aguardava lá embaixo, no calor do inferno.

Foi o povo hebreu que deu esse caráter moral à divindade, mas, antes dele, já havia algo parecido na religião egípcia. Os egípcios adoravam uma deusa chamada Maat, que, como o Roberto Carlos dos anos 1980, adornava os cabelos com uma pena. Quando a pessoa morria, sua alma descia para o mundo subterrâneo, onde seria julgada. Ela se via posta diante de uma balança manejada por Maat. A deusa, então, tirava a pena dos cabelos e a deitava em um dos pratos da balança. O morto, por sua vez, colocava seu próprio coração no outro prato. Se o coração pesasse mais do que a pluma, ele estaria condenado e iria diretamente para uma espécie de inferno egípcio, onde ficaria sofrendo pela Eternidade, que é bastante tempo.

A vigilância divina funcionou razoavelmente, até que o bom sucesso da ciência começou a tornar os homens descrentes. Houve o Renascimento, os descobrimentos, a Reforma Protestante, o mercantilismo? Às vésperas da Revolução Industrial, o prestígio de Deus estava abalado. Um dia, Nietzsche proclamou: "Deus está morto!".

Assim, se não havia mais medo da punição divina, por que motivo os homens deveriam continuar fazendo a coisa certa? Os filósofos tentaram encontrar essa resposta, entre eles o famoso trio de meio-campo Hobbes, Locke e Rousseau, que divergiam em muita coisa, mas concordavam em uma: para viver em comunidade, os homens estabelecem um "contrato social". Ou seja: você aceita perder um pouco da sua liberdade para ganhar segurança. Aceita cumprir regras, desde que todos também cumpram. Desta forma, você não mata quem é mais fraco do que você para não ser morto por quem é mais forte.

Ainda não chegamos ao velho e bom Kant, aonde quero chegar, mas já se nota aí algo que tem muito a ver com a situação do Brasil. É que os brasileiros perceberam, intuitivamente, que o nosso contrato social precisa ser reformado. Há um desequilíbrio no sistema de contrapesos entre segurança e liberdade. Alguns estão com liberdade demais, fazendo com que todos tenham segurança de menos. A leniência das leis e a vasta possibilidade de recursos levam à impunidade e descontrolam a sociedade. Os brasileiros não aceitam mais esse sistema e estão implorando por ordem. Por autoridade. Nosso problema não é econômico, é filosófico.

Isso está claro. Mas que tipo de novo contrato social queremos assinar? É aí que entra Kant. Do qual falarei amanhã.

DAVID COIMBRA

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