03 DE JUNHO DE 2020
DAVID COIMBRA
A palavra que não se fala
Tem uma palavra que branco não pode falar nos Estados Unidos. É nigger. Pronuncia-se "nigah". A tradução literal seria negro, mas não é bem isso. Nigger, ou nigga, é um termo pejorativo, altamente preconceituoso. Era usado, sobretudo, pelos sulistas para se referir aos escravos de origem africana e seus descendentes.
Então, é algo ofensivo e, sendo assim, só negros podem falar essa palavra por lá. Se um branco quer se referir a nigger por algum motivo, tem de dizer N word. Ou "a palavra que começa com ene".
O meu filho, latino que é, gozava de popularidade entre os grupos de negros na escola em que estudava. E seus amigos negros brincavam que, por isso, ele tinha o N pass. Isto é: a permissão concedida pelos negros a um branco para falar a palavra nigger.
"E tu fala?", perguntei a ele.
"Eu, não, papai! Capaz que eu ia falar uma palavra dessas!"
Veja como desde pequenos os negros americanos lidam conceitualmente com a discriminação. Porque o formato da sociedade americana é bem diferente do da brasileira. A começar pela geografia das cidades. Como os Estados Unidos estão sempre recebendo imigrantes, os guetos de nacionalidades se mantêm. Em Boston e em Nova York, por exemplo, há Chinatowns e Little Italys. E bairros coreanos, bairros judeus, bairros russos, bairros brasileiros. Há towns de Boston em que você entra e pensa ter voltado ao Brasil - por toda parte você vê lojas com letreiros em português e bandeiras da Seleção nas janelas, enquanto o som da música sertaneja empesteia o ar. Alguns estrangeiros vivem de tal maneira isolados, que passam 20 anos morando nos Estados Unidos sem aprender a falar inglês.
Em cada uma dessas grandes cidades, há também bairros negros. Em Boston há o Roxbury, onde Malcolm X viveu, tornou-se assaltante de casas e foi preso. Em Nova York há o Harlem, onde Malcolm X pregou o islamismo e foi assassinado por islâmicos.
Essa divisão acentua as diferenças. Proporcionalmente, há muito mais negros no Brasil (50% da população) do que nos Estados Unidos (13% da população). Mas os negros americanos são mais incisivos na afirmação da sua africanidade, digamos assim. Se isso é bom ou ruim, não sei. Sei que é.
Pegue Porto Alegre em comparação com Boston e Nova York. Porto Alegre tinha seus guetos - a Ilhota era um bairro negro, o Moinhos de Vento era um bairro alemão, o Bom Fim, judeu. Mas, como a cidade parou de receber imigrantes, os filhos de negros, alemães e judeus foram se mesclando, foram ganhando brasilidade e perdendo a identificação com a origem dos pais.
Agora, nos Estados Unidos, uma revolta espetacular explodiu no país por causa daquele crime brutal cometido por policiais de Minneapolis. A cena do policial com o joelho no pescoço do homem negro foi tão chocante, que mobilizou negros e brancos, homens e mulheres, uniu o país e certamente representará um avanço. Os Estados Unidos vão melhorar depois dessa rebelião. Haverá menos ações violentas da polícia, menos discriminação e, provavelmente, mais paz.
Enquanto isso, no Brasil, um grupo sai marchando por Brasília com máscaras brancas cobrindo o rosto e com tochas na mão, numa óbvia referência à Ku Klux Klan, a odienta organização racista americana. Como podemos tolerar uma afronta dessas? Por que não nos indignamos? Tenho a impressão de que, ao contrário dos Estados Unidos, estamos andando para trás. Em direção às sombras. Cada vez mais para trás.
DAVID COIMBRA
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